terça-feira, 6 de julho de 2010

"Medéia: a linguagem dos signos em cena", por Anna S. Camati.


Artigo Publicado em 19/06/2010 GAZETA DO POVO Caderno G p.5

Anna Stegh Camati*

   A apropriação dos clássicos como material para novas criações é uma prática recorrente na história do teatro, sendo que, na contemporaneidade, não mais lemos as tragédias gregas como um texto único, mas como a soma do texto originário acrescido de marcas e traços de adaptações posteriores. Assim sendo, torna-se válido afirmar que as recriações cências e fílmicas dos clássicos são palimpsestos que dialogam com a complexa rede de intertextos acumulados através dos séculos. O espetáculo Medeia, em cartaz no pequeno auditório do Teatro Guaíra, idealizado pelo encenador Marcelo Marchioro, em parceria com as atrizes Claudete Pereira Jorge e Helena Portela, com direção e atuações sólidas e impecáveis, é uma nova variante em torno da figura de Medeia que amplia o acervo mítico universal.
   O texto da montagem, criado a partir das traduções de Mário da Gama Cury e Millôr Fernandes, converte a obra de Eurípides em um quase monólogo: o novo texto apresenta cortes, reduções e deslocamentos de falas, bem como a omissão do desfecho deus ex machina, um desvio que assinala a atualização espaço-temporal, sugerindo a impossibilidade de uma saída triunfal da cena de infanticidas à moda grega na contemporaneidade. No final do espetáculo, observa-se, também, uma interpolação textual: o lamento inicial proferido por Medeia é reduplicado para marcar a circularidade, um recurso que alude ao incessante recontar de uma história arquetípica, ao eterno retorno e à repetição ad infinitum de matrizes de vivências. 




   A densidade trágica do espetáculo é ampliada pela concentração dos monólogos da personagem-título, protagonizada por Claudete Pereira Jorge, cujo discurso encontra respaldo contrapontístico nas réplicas de Helena Portela. Por meio da acumulação de vários papeis e vozes, enunciando falas não somente da ama, mas também das personagens masculinas e do coro feminino suprimidos, esta figura múltipla ativa a consciência metareferencial da plateia que conhece o enredo trágico da peça. Desta maneira, a narrativa é acelerada, poupando tempo e espaço para um sofisticado processo de mise-en-scène. Além disso, o apagamento das figuras masculinas, por meio da estilização das mesmas, materializadas em sombras e/ou imagens estáticas, como a máscara trágica em argamassa de Creonte e a projeção em traços estilizados do rosto de Jasão, sublinha a postura crítica inaugurada por Eurípides.
   O tragediógrafo grego ousou fazer uma inversão paródica dos legados de Ésquilo e Sófocles, quando substituiu o protagonista masculino tradicional por uma mulher estrangeira transgressora e introduziu o coro das mulheres de Corinto no lugar dos anciãos do estado e dos suplicantes. Se na polis grega a mulher não tinha vez nem voz, na montagem curitibana são os homens que não tem direito à réplica.
   No processo de adaptação, o encenador amplia o universo de referências para além da matriz do texto clássico, promovendo um encontro entre a dramaturgia de Eurípides, as linguagens cênicas do contemporâneo e referências intermidiáticas diversas. Destacam-se, no espetáculo, as alusões ao filme Medea (1988), de Lars Von Trier, uma adaptação livre do roteiro homônimo de Carl Theodore Dreyer que, inspirado no material mítico, relê a tragédia por um viés ritualístico. Ao transplantar a história de Medeia para as paisagens áridas da Jutlândia, Von Trier recria o roteiro fílmico de Dreyer com ênfase na visualidade.
   Marchioro, por sua vez, presta homenagem a esses dois grandes cineastas, com a transcriação para a cena de uma série de impressionantes imagens e apelos sensoriais. Trata-se de um processo de apropriação e remodelização das práticas representacionais de Von Trier que contribui para recriar, no palco, a atmosfera trágica cerrada, proporcionando, assim, maior contundência ao discurso atávico da mulher ultrajada proferido por Medeia. Suas falas são seguidas por períodos de silêncio e movimentação nervosa em que a preparação ritualística dos venenos é operacionalizada. Enquanto no filme de Von Trier, Medeia realiza, solitariamente, as tarefas de maceração e destilação dos venenos das plantas com o auxílio do fogo, no espetáculo esse ritual é compartilhado pela ama que se revela confidente e cúmplice, irmanada na identificação do feminino.
   No entanto, a fonte da teatralidade do espetáculo não reside apenas no jogo cênico das atrizes e/ou nas palavras enunciadas por elas, mas também na criação da atmosfera trágico-ritualística que se materializa no palco por meio de elementos não verbais diversos. O cenário, os figurinos e os adereços de Ricardo Garanhani, nas cores terra, ocre e sépia, sugerem uma relação de analogia constitutiva do ut pictura poesis, ou seja, uma configuração pictural, ‘como num quadro’, evocando a paisagem desolada e as planícies estéreis retratadas por Von Trier. A cena de violência estilizada que simula o enforcamento das crianças também dialoga com o filme do cineasta dinamarquês que, diferentemente de Eurípedes, não nos poupa da visualização do infanticídio.

   A luz de Erika Mitiko contribui para a criação de efeitos estéticos que se configuram em sombras e saturação de cores: o azul, o preto, o cinza e o vermelho intensificam a textura emocional e psicológica subjacente à crescente agonia de Medeia, dissimulada pela oralidade contida e pela face, sem emoção aparente, da protagonista. A sonoplastia sensorial de Troy Rossilho, criada especificamente para o espetáculo, é pontuada pelos sons da natureza como as ondas do mar e o vento e pela dureza da sonoridade, proporcionando o tom certo para o jogo de cena e intensificando os sentimentos veiculados pela vocalização das palavras do texto.
   A dinamicidade articulada pelo diálogo entre o verbal, o visual e a sonoplastia conduz a um envolvimento orgânico e sensorial, desencadeando um processo de produção de sentido em que o espectador constitui o eixo central. Apesar da ausência de referências a fatos contemporâneos, percebe-se que, mesmo assim, a platéia tende a fazer aproximações do espetáculo com a conjuntura política e social de hoje devido à supressão do desfecho deus ex machina e à impressionante atualidade do texto de Eurípides.
      
*Anna Stegh Camati é professora do programa de mestrado em Teoria Literária da Uniandrade.


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