Texto de Julián Bargueño sobre a “Estética da Recepção”, de Robert Hans Jauss Mestrando em Teoria Literária da Uniandrade

 
Em meados do século XIX, a crítica romântica dominava o estudo literário e o modo como as obras e seus autores eram vistos e compreendidos em meio à produção literária da época. Seu foco de estudo e a importância dada à obra literária focava-se primordialmente no estudo biográfico do autor, caracterizando assim uma maneira “indireta” de compreender as obras através da pesquisa em torno da vida dos criadores. Poder-se-ia afirmar que autor e obra seriam um mesmo “objeto”, a matéria indissolúvel pela qual a literatura era compreendida. Este foco desloca-se nas primeiras décadas do século XX através da aparição de novas escolas literárias como o Formalismo Russo e o New Criticism, que elegem o texto como seu principal objeto de estudo, contrastando assim o novo approach com o da escola de crítica romântica.
O Formalismo Russo, ou Crítica Formalista, desenvolvido na Rússia entre 1910 e 1930, tem como seus maiores representantes teóricos Boris Eichenbaum, Roman Jakobson, Viktor Chklovsky, Yury Tynyanov, e Grigory Vinokur, que revolucionaram a crítica literária principalmente a partir do ano de 1914. Tendo como princípio a importância do entendimento do objeto literário em termos de sua materialidade, o Formalismo compreende a obra como produto estético, negando assim quaisquer abordagens que privilegiem fatores extraliterários em relação à obra propriamente dita. Em contraposição com abordagens anteriores, aspectos sociológicos, históricos e biográficos são completamente desconsiderados.
Apoiado em dois princípios dominantes, o estudo formalista concentrava-se nas seguintes ideias:
1.      O objeto de averiguação da teoria literária deve ser a literatura por ela mesma e as características que a tornam particular em relação a outras atividades do ser humano.
2.      A prioridade dos fatos literários em contraste com questões psicológicas ou filosóficas da crítica literária.
O New Criticism, surgido nos Estados Unidos nas décadas de 1920 e 1930, teve seu auge nas décadas seguintes de 1940 e 1950. Os new critics concentravam-se no estudo das técnicas empregadas pelos autores de obras literárias e deixavam de lado o ponto de vista valorizado anteriormente da ligação entre vida e obra dos autores. O chamado close reading, usado na análise dos new critics, tem como filosofia o estudo minucioso dos elementos contidos no “interior” do texto, e apenas estes aspectos teriam valor ao exercerem-se a leitura e a crítica de uma obra. O close reading, portanto, considera que o significado e a estrutura do texto coexistem em uma mesma unidade e não devem ser separados no momento da análise literária. Considerada uma escola objetiva pela maneira em que aborda os métodos pelos quais obras literárias são estudadas, o New Criticism prega a importância do texto como uma “unidade em si própria”, auto-suficiente, negando assim a importância da resposta do leitor, dos contextos extratexto, como história e cultura, e da questão da intenção do autor. O New Criticism caracteriza-se também por valorizar a noção da existência de ambiguidade em um texto, refletida no fato de que um mesmo texto tem o poder de conter variados significados simultaneamente. O texto, também neste caso – assim como para os formalistas – é o único fator importante. O crítico deve concentrar-se nas palavras impressas e a consideração de fatores externos não passariam de “intromissões” desnecessárias e prejudiciais à análise literária.
O papel do leitor na constituição de sentido de um texto e sua importância na recepção de obras literárias passa a tomar forma apenas mais tarde, através de estudos mais contemporâneos como a Estética da Recepção. Tendo como seus maiores representantes Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser Stanley Fish, a Estética da Recepção, assim como as teorias anteriores fizeram com suas antecessoras, desloca o foco de estudo anterior e se forma constituindo um novo ponto de vista.
Jauss, em aula inaugural em 1967[1] na Universidade de Constança, critica os métodos anteriores de crítica por suas características objetivas e de pouca abertura em relação aos fatores externos ao texto e ao não reconhecimento da importância do leitor no processo da leitura. Para ele, é impossível analisar uma obra separada da maneira como é lida e recebida pelo público leitor: sem leitores, obras não são completas.
Ao analisar teorias anteriores às suas propostas, Jauss apresenta uma nova maneira de se entender a leitura e a crítica literária ao unir o valor histórico e estético da literatura. A recepção do leitor e a inevitável comparação de determinada leitura com suas referências através de seu “histórico literário” – todas as leituras que o leitor já realizou – formariam parte do valor estético produzido pelo encontro leitor-obra. Já o valor histórico se materializa à medida que uma obra é publicada e recebida pelo público desde seu primeiro momento até o presente, formando uma “linha do tempo” pela qual a obra se movimenta através de sua recepção temporal.
Jauss apresenta suas teorias sobre a recepção do texto através de sete teses divididas em dois grupos: o primeiro contém quatro teses com característica de premissas, e o segundo, contém três teses de “ação”.
Em sua primeira tese, Jauss toca no ponto a que ele se refere como historicidade da literatura. Apesar de a palavra historicidade insinuar certa noção de “viagem no tempo”, tal proposta não se refere à historicidade dos fatos literários, mas sim ao diálogo que inevitavelmente se forma entre leitor e obra. A obra literária, dotada de caráter dialógico, jamais proporciona a mesma experiência a cada leitor – ou até mesmo a mesma experiência a um mesmo leitor a cada nova leitura. Jauss afirma que “a obra literária não é um objecto existente em si mesmo, oferecendo a cada observador, em cada momento, a mesma aparência” (JAUSS, 1993, p.62). Surge então a noção de “acontecimento literário” [literary event] que possibilita ao leitor adquirir novas referências de leitura que serão material para novos critérios de avaliação em suas futuras leituras. E este processo se renova a cada encontro do leitor com uma nova obra que se somará às referências passadas em uma influência direta sobre sua experiência literária em constante formação. Como afirma Jauss:

A História da literatura é um processo de recepção e produção estéticas que se cumprem na actualização dos textos literários, através do leitor que lê, do escritor que produz e do crítico que reflete.
[...]
O contexto histórico em que aparece uma obra literária não consiste numa sucessão de acontecimentos, factual e auto-sustentada, que poderia existir de modo independente, sem a necessidade de um receptor. [...] só se torna um acontecimento literário para o seu leitor, que lê [...] esta obra [...] com a memória de [...] obras anteriores, que aprecia sua especificidade por comparação com essas e outras obras já conhecidas e que ganha, a partir daí, um novo critério de apreciação a partir do qual poderá apreciar obras futuras. (JAUSS, 1993, p. 62-63)

Em sua segunda tese, Jauss introduz a noção da existência de um saber prévio que determina a recepção da obra pelo público leitor. Este “horizonte de expectativas” estaria acima da compreensão subjetiva e particular de cada leitor. A nova obra não se apresenta a um receptor “virgem”, pois este carrega dentro de si expectativas, lembranças e sensações que influenciam na maneira com que a compreensão do futuro (ou presente) texto é adquirida. Dentro deste contexto, a recepção da obra configura-se como um fato social e histórico ao situar as reações individuais de cada leitor em meio a um mundo mais amplo e coletivo no qual cada indivíduo está inserido, e pelo qual é sugestionado a interpretar influenciado por este “saber coletivo”. A experiência social e histórica do grupo ao qual o indivíduo pertence seria, portanto, dominante em contraste com cada leitura individual.
O conceito de horizonte de expectativas proposto por Jauss é um de seus postulados básicos e delimita o papel inicial do leitor em seu encontro com a obra ao propor que este se baseia em um (in)consciente prévio estabelecido social e historicamente. As características e códigos de uma época influenciam, portanto, diretamente no primeiro contato ou “choque” do leitor com o texto. Segundo Jauss:

Uma obra não se apresenta nunca, nem mesmo no momento em que aparece, como uma absoluta novidade, num vácuo de informação, predispondo antes o seu público para uma forma bem determinada de recepção, através de informações, sinais mais ou menos manifestos, indícios familiares ou referências implícitas. Ela evoca obras já lidas, coloca o leitor numa determinada situação emocional, cria, logo desde o início, expectativas a respeito do ‘meio e do fim’ da obra que, com o decorrer da leitura, podem ser conservadas ou alteradas, reorientadas ou ainda ironicamente desrespeitadas, segundo determinadas regras de jogo relativamente ao género ou ao tipo do texto. O processo psíquico que acompanha a recepção de um texto, neste primeiro estádio da experiência estética, não se reduz de forma alguma a uma sucessão contingente de impressões subjectivas. (JAUSS, 1993, p. 66-67)

A terceira tese de Jauss introduz a noção de “distância estética” ao panorama previamente proposto. Partindo do princípio da inevitabilidade da relação leitor-obra-horizonte de expectativas estabelecido, o texto pode tanto confirmar e fortalecer o horizonte de expectativas pré-estabelecido ou, por outro lado, romper com as normas e costumes que caracterizam tal horizonte. O caráter estético de uma obra seria caracterizado pela “distância estética” formada no momento em que se estabelece o contraste – ou distância – entre as expectativas do leitor e o que, de fato, se materializa no contato da obra com ele. Assim, com o decorrer do tempo, uma obra que parecia romper com o horizonte de expectativas da época pode passar a ter uma representatividade diminuída pela “mutação” do horizonte através da passagem do tempo. O inverso também é possível. As grandes obras – ou obras imortais – estariam alheias a tal processo, sobrevivendo e mantendo sua integridade e consistência mesmo com a transformação natural que ocorre com o horizonte de expectativas do leitor à medida que esta se modifica. A aceitação de grandes obras, porém, pode não ser imediata, pois a recepção da obra pelo leitor pode variar a entre o momento em que o contato é feito até que o passar do tempo modifique o horizonte de expectativas e, assim, consequentemente, a recepção inicial. Assim,

[...] há obras que não têm ainda relação com nenhum público definido no momento de seu aparecimento, mas que abalam tão profundamente o horizonte familiar de expectativa que o seu público não pode senão constituir-se progressivamente. Quando, depois, o novo horizonte de expectativa se impõe largamente, o poder da norma estética, então alterada, pode manifestar-se através do facto de o público considerar, como antiquadas, as obras que tinham até então a sua preferência [...]. (JAUSS, 1993, p. 75)

Em sua quarta tese, Jauss propõe a recuperação da historicidade do texto literário. Analisam-se as relações do texto com a época em que foi publicado, qual o horizonte de expectativas daquele momento e de que forma a obra forneceu respostas às questões predominantes vigentes. A historicidade do texto se baseia na noção de que a recepção da obra à época de seu lançamento existiu de forma distinta às diferentes recepções que este sofreu ao longo do tempo e até o presente. Surge assim a ideia de que épocas diferentes formulam diferentes perguntas, e o texto literário, ao deparar-se com essa realidade, tem o poder de fornecer também diferentes respostas, adaptando-se dessa forma a novas situações. À medida que o sentido de um texto é “reconstruído” com o passar do tempo, também o horizonte de expectativas do leitor modifica-se, formando assim um diálogo entre o significado possível da obra e o entendimento renovado por parte do leitor. A mesma obra não “reproduz” significados em novas leituras e recepções, mas produz um novo significado a cada contato com seus leitores, em diferentes épocas. O texto é, portanto, sempre atual:

A reconstituição do horizonte de expectativa tal como ele existia no momento de criação e de recepção de uma obra possibilita, para além do mais, pôr questões às quais o texto dava uma resposta, e fazer-nos entender assim como é que o leitor de então o via e compreendia. Esta abordagem permite corrigir a influência, quase sempre inconsciente, das normas de uma concepção clássica ou modernista da arte e dispensar o recurso à noção de um espírito da época, noção que conduz a um círculo vicioso. Faz aparecer claramente a diferença hermenêutica entre a compreensão de outrora de uma obra e a de hoje, torna consciente – estabelecendo a relação entre as duas posições – a história da sua recepção, e questiona, como dogma platônico da Filosofia metafísica, a aparente evidência, segundo a qual o texto literário possui uma essência poética sempre actual e intemporal e um sentido objectivo fixado de uma vez por todas, imediatamente acessível aos intérpretes de todos os tempos. (JAUSS, 1993, p.79)

No “segundo grupo”, que comporta a quinta, sexta e sétima teses, Jauss propõe o método pelo qual as obras literárias devem ser estudadas. Jauss sugere a análise dos aspectos diacrônico, sincrônico e a relação entre a literatura e a vida do leitor.
O aspecto diacrônico, proposto na quinta tese, aborda a questão da recepção da obra ao longo do tempo e não apenas no momento de sua aparição. O texto não deve ser analisado apenas em um momento específico, mas sim em relação às suas leituras posteriores e contínuas. O valor de uma obra, portanto, não se limita ao seu impacto inicial ou até mesmo pontual de um período determinado, mas transcende a especificidade temporal e prova ser significativo em diferentes momentos de variadas formas. Obras que tiveram um impacto inicial expressivo podem perder tal capacidade com o passar do tempo, e o inverso também pode ocorrer. Assim, pode-se afirmar que recepção de um texto jamais é linear, pois se modifica continuamente. Como afirma Jauss:

Tal significa que o carácter artístico de uma obra [...] não é necessariamente perceptível desde o instante que a obra aparece, segundo o horizonte literário desse instante, e não pode inteiramente medir-se a fortiori pelo mero contraste entre a forma antiga e a nova. A distância entre a primeira percepção actual de uma obra e as suas significações virtuais ou, dito de outro modo, a resistência que a obra nova opõe à expectativa de seu primeiro público pode ser tão grande que será necessário um longo processo de recepção antes de ser assimilado aquilo que era originalmente inesperado e inassimilável. Nesta medida, pode acontecer que uma significação virtual permaneça ignorada até ao momento em que a ‘evolução literária’, ao dar lugar à actualização de uma nova forma, atinge o horizonte a partir do qual se torna então possível o acesso à compreensão da forma antiga, até aí desconhecida. (JAUSS, 1993, p. 94)

Em contraste com o aspecto diacrônico, a sexta tese de Jauss exemplifica o aspecto sincrônico, que tem como objetivo buscar um ponto de articulação entre obras surgidas em uma mesma época. Em tal análise, busca-se as características que podem haver possibilitado a uma obra ter rompido com as normas existentes e criado novas possibilidades de rumo para a literatura, assim como constatar, no outro polo, de que forma a obra pode ser conformista em relação ao horizonte de expectativas da época e do gênero ao qual pertence. A importância do aspecto sincrônico também existe na medida em que uma obra é posta lado a lado com outras do mesmo período e gênero, possibilitando ser visualizado o seu valor historiográfico perante a “evolução literária” que passa a priorizar determinado gênero em detrimento de outros. A especificidade da recepção em diferentes períodos, portanto, vem à tona através do mecanismo provocado pela análise sincrônica de uma obra. A percepção obtida através da soma dos aspectos sincrônicos e diacrônicos possibilita, assim, uma compreensão total da obra na medida em que os dois aspectos se somam e se completam:

Em princípio, poder-se-ia representar uma literatura [...] como a sucessão de sistemas na história, estudando determinados pontos de intersecção entre a sincronia e a diacronia. Mas a dimensão histórica da literatura, a sua continuidade factual [...] só podem ser recuperadas se o historiador da literatura souber encontrar os pontos de intersecção e puser em relevo as obras que permitem articular, de um modo pertinente, o curso da “evolução literária”, através dos seus momentos fortes e das suas cesuras epocais. Decisivo para esta articulação histórica é não a estatística nem a arbitrariedade subjectiva do historiador mas sim a história dos efeitos: “Aquilo que resultou do acontecimento” e que, a partir do ponto de vista do presente, constitui a continuidade da literatura como antecedente histórico da sua manifestação presente. (JAUSS, 1993, p. 103)

A sétima e última tese de Jauss trata da relação entre a literatura e a vida, pressupondo assim uma relação social entre o leitor e a obra. A experiência estética estaria presente possibilitando ao leitor nova visão sobre seu cotidiano e existência, proporcionando-lhe, assim, a capacidade de “emancipação” através da experiência literária. Não apenas o horizonte de expectativas de um grupo social seria determinante na importância da recepção de um texto, mas também o horizonte único de cada leitor, que, através do contato com a obra, reconsidera e reconstrói seu horizonte de expectativas particular. Esse processo se reflete na influência direta sobre o comportamento, a visão e o entendimento do mundo por parte do leitor. Cumpre-se, assim, a função “libertadora” do contato com a obra e das consequências de tal encontro:

A História literária só cumprirá a sua tarefa quando a produção literária for representada, não apenas na sincronia e diacronia da sucessão dos sistemas que a constituem mas também compreendida, enquanto história particular, na sua relação específica à história geral. Esta relação não se reduz ao facto de se poder descobrir na literatura de todos os tempos uma imagem tipificada, idealizada, satírica ou utópica da existência social. A função social da literatura só manifesta genuinamente as suas possibilidades quando a experiência literária do leitor intervém no horizonte de expectativa da sua vida quotidiana, orienta ou modifica a sua visão do mundo e age consequentemente sobre o seu comportamento social. (JAUSS, 1993, p. 105)

Através desta última proposta, a relação obra/recepção se completa, de forma a compreendermos a Estética da Recepção segundo as teorias de Hans Robert Jauss.



[1] Publicada em 1969 sob o título Literary History as a Challenge to Literary Theory e, mais tarde, como capítulo inicial de uma das obras teóricas mais significativas da Estética da Recepção, Toward na Aesthetic of Reception (1982), de Hans Robert Jauss.