quinta-feira, 29 de novembro de 2012

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

QUEM ESCREVEU SHAKESPEARE?

Profa. Anna Stegh Camati

Em julho de 2012, Anônimo (Anonymous) foi lançado em DVD no Brasil. O filme é polêmico e explora a ficcionalização de pessoas reais. Assim como Shakespeare apaixonado (1998), com roteiro de Marc Norman/ Tom Stoppard e direção de John Madden, que promoveu a dessacralização de Shakespeare ao representá-lo como um autor que sofre bloqueio criativo, o filme Anônimo (2011), dirigido por Roland Emmerich, muito mais do que endossar a teoria oxfordiana que atribui a Edward de Vere, 17º Conde de Oxford (1550-1604), a autoria das obras de Shakespeare, é, a meu ver, um jogo paródico que desconstrói inúmeras textualidades em torno dessa questão.
Em relação a essa problemática, há mais de 50 candidatos ao trono, ou seja, mais de 50 nomes propostos por pesquisadores diversos, dentre eles Francis Bacon, Walter Raleigh, Cristopher Marlowe, o Conde de Derby, o Duque de Rutland, e a própria Rainha Elisabete, além do Conde de Oxford. Há aqueles que acreditam que as obras de Shakespeare foram escritas por um grupo de Jesuítas ou por vários estudiosos da Maçonaria. Muitos baconianos sustentam que Francis Bacon não escreveu apenas Shakespeare, mas também obras de outros autores como Marlowe, Spenser, Milton, Montaigne etc. Todos esses candidatos fazem parte de um jogo detetivesco, porque as pessoas realmente interessadas em Shakespeare tendem a mergulhar no universo de suas obras e não se preocupam em decifrar identidades.
A imagem de Shakespeare foi denegrida tanto pelos oxfordianos como baconianos ou marlowianos que se referem a ele como “clown analfabeto e bêbado de Stratford-upon-Avon”, “tratante sórdido e mentiroso” ou “mascate desprezível”. Os idealizadores do filme representaram o bardo de acordo com essas características difundidas pelas facções anti-stratfordianas, não com o intuito de difamar Shakespeare, mas tão somente para colocar em xeque contradições e especulações.
Diversos estudiosos criticaram Anônimo porque o filme apenas mostra os preconceitos aristocratas em relação ao meio teatral considerado pouco respeitável na época e, em nenhum momento, discute a relação entre a vida e/ou as técnicas poéticas de Edward de Vere e os escritos atribuídos a Shakespeare, ou seja, o filme não explora os argumentos nos quais os oxfordianos se apoiam para fundamentar a questão da autoria. Acredito que essa omissão já é suficiente para definir a postura dos criadores que não objetivaram inserir no filme elementos para validar a teoria oxfordiana.
Mas posso dizer que vale a pena assistir ao filme pela representação do alvoroço de Londres e efervescência do teatro popular, pelas brincadeiras com o passado histórico ambientado na corte elisabetana e suas intrigas políticas, e pela mistura de fatos (encontrados em documentos) e ficções (fantasias e romances sobre Shakespeare e a questão da autoria), aspectos que propiciaram aos idealizadores do filme um rico material para a reinvenção.
Leiam a matéria Ser ou não ser, ainda a questão, escrita por Elaine Guarini, com a minha participação, no Valor Econômico, 13, 14 e 15 de julho de 2012. Ano 13. Nº 610.
Disponível em:
http://www.valor.com.br/cultura/2750110/ser-ou-nao-ser-ainda-questao#ixzz24gErpn2v














quarta-feira, 29 de agosto de 2012

QUEM ESCREVEU SHAKESPEARE?

Profa. Anna Stegh Camati

Em julho de 2012, Anônimo (Anonymous) foi lançado em DVD no Brasil. O filme é polêmico e explora a ficcionalização de pessoas reais. Assim como Shakespeare apaixonado (1998), com roteiro de Marc Norman/ Tom Stoppard e direção de John Madden, que promoveu a dessacralização de Shakespeare ao representá-lo como um autor que sofre bloqueio criativo, o filme Anônimo (2011), dirigido por Roland Emmerich, muito mais do que endossar a teoria oxfordiana que atribui a Edward de Vere, 17º Conde de Oxford (1550-1604), a autoria das obras de Shakespeare, é, a meu ver, um jogo paródico que desconstrói inúmeras textualidades em torno dessa questão.
Em relação a essa problemática, há mais de 50 candidatos ao trono, ou seja, mais de 50 nomes propostos por pesquisadores diversos, dentre eles Francis Bacon, Walter Raleigh, Cristopher Marlowe, o Conde de Derby, o Duque de Rutland, e a própria Rainha Elisabete, além do Conde de Oxford. Há aqueles que acreditam que as obras de Shakespeare foram escritas por um grupo de Jesuítas ou por vários estudiosos da Maçonaria. Muitos baconianos sustentam que Francis Bacon não escreveu apenas Shakespeare, mas também obras de outros autores como Marlowe, Spenser, Milton, Montaigne etc. Todos esses candidatos fazem parte de um jogo detetivesco, porque as pessoas realmente interessadas em Shakespeare tendem a mergulhar no universo de suas obras e não se preocupam em decifrar identidades.
A imagem de Shakespeare foi denegrida tanto pelos oxfordianos como baconianos ou marlowianos que se referem a ele como “clown analfabeto e bêbado de Stratford-upon-Avon”, “tratante sórdido e mentiroso” ou “mascate desprezível”. Os idealizadores do filme representaram o bardo de acordo com essas características difundidas pelas facções anti-stratfordianas, não com o intuito de difamar Shakespeare, mas tão somente para colocar em xeque contradições e especulações.
Diversos estudiosos criticaram Anônimo porque o filme apenas mostra os preconceitos aristocratas em relação ao meio teatral considerado pouco respeitável na época e, em nenhum momento, discute a relação entre a vida e/ou as técnicas poéticas de Edward de Vere e os escritos atribuídos a Shakespeare, ou seja, o filme não explora os argumentos nos quais os oxfordianos se apoiam para fundamentar a questão da autoria. Acredito que essa omissão já é suficiente para definir a postura dos criadores que não objetivaram inserir no filme elementos para validar a teoria oxfordiana.
Mas posso dizer que vale a pena assistir ao filme pela representação do alvoroço de Londres e efervescência do teatro popular, pelas brincadeiras com o passado histórico ambientado na corte elisabetana e suas intrigas políticas, e pela mistura de fatos (encontrados em documentos) e ficções (fantasias e romances sobre Shakespeare e a questão da autoria), aspectos que propiciaram aos idealizadores do filme um rico material para a reinvenção.
Leiam a matéria Ser ou não ser, ainda a questão, escrita por Elaine Guarini, com a minha participação, no Valor Econômico, 13, 14 e 15 de julho de 2012. Ano 13. Nº 610.
Disponível em:
http://www.valor.com.br/cultura/2750110/ser-ou-nao-ser-ainda-questao#ixzz24gErpn2v




quarta-feira, 27 de junho de 2012

A autobiografia dos que não escrevem e os direitos humanos


No ensaio intitulado “A autobiografia dos que não escrevem”, Philippe Lejeune flexibiliza os termos de sua definição de autobiografia, ao discutir como uma nova produção “autobiográfica” os relatos de vida coletados pelo gravador e publicados em formato de livro. Concede-se, assim, o direito de transformar em escrita e divulgar ao público a palavra dada a pessoas que não têm o privilégio de escrever e publicar a narrativa da própria vida. É o caso de Rigoberta Menchú, ativista indígena guatemalteca, cujo testemunho à antropóloga venezuelana, Elizabeth Burgos-Debray publicado como Meu nome é Rigoberta Menchú e assim me nasceu a consciência  (1983), valeu-lhe o Prêmio Nobel da Paz de 1992. Narrativas pessoais como essa se tornaram um dos veículos mais potentes na luta pelos direitos humanos em todo o mundo.
Human Rights and Narrated Lives (Direitos humanos e vidas narradas) foi o tema do seminário ministrado pela Dra. Sidonie Smith, da Universidade de Michigan, no III Congresso Internacional da ABRAPUI na Universidade Federal de Santa Catarina, de seis a nove de maio. Transcrevemos abaixo, traduzida e editada, a proposta do seminário apresentada aos participantes, por julgá-la relevante para os interessados nos estudos dos gêneros autobiográficos.

Sidonie Smith (Universidade de Michigan) – Direitos humanos e vidas narradas

Com o apelo à empatia do leitor, narrativas de vida que fazem reivindicações contra agentes de um estado ou de facções políticas tornaram-se um poderoso instrumento para o avanço da luta mundial pelos direitos humanos. Servem a múltiplos propósitos: relatar injúrias, confrontar as conseqüências de traumas sofridos, identificar culpados, exigir desculpas, homenagear as vítimas mortas ou silenciadas, convocar à ação e levantar fundos para causas ativistas e para ONGs.
Nas três últimas décadas vários tipos de narrativas circulam em nível global. Os gêneros testemunhais incluem narrativas de genocídios tais como as do holocausto e dos assassinatos em Ruanda; histórias de exploração e traição em guerras, como o exemplo mais recente de crianças forçadas a lutar como soldados; histórias individuais e coletivas de prisão política e tortura; histórias orais de sobreviventes idosas do sistema organizado de escravidão sexual durante a Segunda Guerra Mundial; documentários sobre sobreviventes de estupros em locais como a Bosnia-Herzegovina; relatos feitos por mulheres de “assassinatos em nome da honra”; narrativas que recordam dissidentes políticos “desaparecidos” na Argentina; narrativas de assassinatos, tortura e desaparecimento na África do Sul pós-apartheid; histórias de indígenas australianos “roubados” de suas famílias e comunidades e colocados em orfanatos ou lares adotivos.
Ativistas no campo dos direitos humanos ou de comissões em julgamentos oficiais buscam tais histórias e organizam arquivos de violações de direitos para construir a documentação necessária para trazer um caso perante fóruns oficiais e ao conhecimento público. Por vezes, uma narrativa em particular, publicada e divulgada como história de um(a) sobrevivente, atinge ampla repercussão internacional e transforma a testemunha em celebridade na arena dos direitos humanos.
Este seminário aborda narrativas de vida e campanhas pelos direitos humanos como domínios multidimensionais que se intersectam em pontos críticos, em uma relação ética que é, a um tempo, importante como reivindicação de justiça social e problemática na consecução deste objetivo.
Examinaremos como narrativas autobiográficas são produzidas, recebidas e circuladas no campo de direitos humanos, a fim de compreender melhor como e em que condições essas narrativas podem afetar a reorganização política atual e ser afetadas por  ela.
Relevantes para o nosso seminário são as questões do tráfico contemporâneo de narrativas de sofrimento, o valor da “autenticidade” e o escândalo das imposturas, além de práticas alternativas de narrativas de vida.

Tradução de Mail Marques de Azevedo

quarta-feira, 6 de junho de 2012

DA PINTURA AO TEXTO TEATRAL: DISCURSOS INTERMIDIÁTICOS EM
QUANDO DESPERTARMOS DE ENTRE OS MORTOS, DE HENRIK IBSEN


Profa. Dra. Anna Stegh Camati


Além de ser considerado o pai do drama moderno e ter renovado as artes cênicas, Henrik Ibsen (1828-1906) foi apontado, por Malcolm Bradbury (1989, p. 61), como sendo “o dramaturgo que, mais do que qualquer outro escritor, dominou o início do movimento modernista”. Na modernidade, a representação de diferentes formas de subjetivação torna-se uma das principais fronteiras expressivas e, nesse sentido, Ibsen promove uma reflexão sobre a nova subjetividade que aflora no limiar do século XX. Com o intuito de revelar, no espaço da escritura dramática, a paisagem interna das personagens que se deparam com anseios e desejos que, muitas vezes, elas mesmas não compreendem, Ibsen se envolveu com todos os movimentos artísticos de seu tempo, desde o simbolismo até o expressionismo e surrealismo, cujos representantes investigavam as profundezas da psique a partir de ideias difundidas por Kierkegaard, Nietzsche e Freud.
Em sua fase simbolista (1890-1899), Ibsen explora a natureza elusiva e contraditória da subjetividade humana por meio de referências psicoanalíticas, pictóricas e míticas, destacando-se na representação de aspectos difíceis de serem traduzidos em palavras. Nesse sentido, a linguagem visual configura-se em importante subtexto para a revelação das subjetividades das personagens.
Em sua última peça, Quando despertarmos de entre os mortos (1899), Ibsen rompe totalmente com as convenções dramáticas da peça-bem-construída ou peça de intriga, criando um drama inspirado em mitos gregos e imagens simbólicas. A ação é substituída pela revelação das subjetividades das personagens que “não são pessoas reais do mundo cotidiano”, mas podem ser consideradas arquétipos ou “símbolos da visão poética do dramaturgo” (MENEZES, 2006, p.63), seres que tentam entender e nomear os afetos que os movem. A peça também pode ser lida como o retrato do artista em sua desenfreada busca por novas linguagens para expressar o novo Zeitgeist em efervescência na virada do século XX.
Este ensaio propõe-se a discutir as descrições ecfrásticas de duas esculturas, enunciadas por Arnold Rubek, que aludem ao seu afastamento da fase juvenil romântica para se tornar um artista moderno, e investigar a produção de sentido gerada pela manipulação de referências pictóricas simbolistas que remetem ao quadro de Edvard Munch, “Esfinge – Três estágios da mulher” (1894), principalmente em relação às três personagens femininas Irene, Maja e a Diaconisa e/ou às três fases da vida de Irene, a musa inspiradora do escultor.

1 Considerações teóricas sobre as relações entre a literatura e a pintura

A comparação entre as artes se insere em uma longa tradição que, segundo Platão, remontaria a Simônides de Ceos que empreendeu reflexões sobre a maneira como as artes se relacionam ao sentido da visão ou da audição. Esses postulados teóricos foram retomados por Horácio que, no século I, em sua Epístola aos Pisãos, discute a importância das impressões visuais que seriam mais marcantes do que as auditivas. O mote de Horácio, “um poema é como uma pintura”, retomado pelos teóricos do Renascimento, está na origem da doutrina do Ut pictura poesis. Na frase de Horácio, Ut pictura poesis erit, “um poema existe tal como um quadro”, a pintura constitui o referencial da comparação, sugerindo, assim a superioridade da imagem sobre a linguagem.  Os teóricos do Renascimento inverteram o sentido da comparação: a poesia passou a ser o referencial e a pintura o termo comparado, submetendo a pintura às artes da linguagem. A enunciação de Horácio passou a ser entendida como Ut poesis pictura, “a pintura é como um poema”, e essa inversão de sentido prevaleceu e disseminou-se através dos séculos até ser questionada e reconfigurada, no século XVIII, por Gotthold Ephraim Lessing (LICHTENSTEIN, 2004, p. 9-11).
            A mudança de entendimento da máxima de Horácio, por outro lado, foi um dos meios que modificou o estatuto da pintura, conferindo-lhe, a mesma finalidade que Aristóteles atribuía à poesia dramática, ou seja, de contar uma história. A partir de então, a pintura e a poesia, apesar das rivalidades, foram chamadas de artes irmãs relacionadas em múltiplos aspectos: “Os pintores tomariam seus temas da literatura, transformando a narrativa em quadros, e os escritores celebrariam os pintores em seus textos revelando a significação, por vezes obscura, dessas telas” (LICHTENSTEIN, 2004, p. 13).
A comparação entre as artes que, desde início, se estabeleceu na forma de uma controvérsia que discutia a superioridade da linguagem ou da imagem, foi retomada sob perspectivas diferentes por Lessing que, em 1766, em Laokoon, ou: sobre as fronteiras da pintura e da poesia, se propõe a discutir ambas as artes tomando como base a midialidade ao invés da estética, asseverando que toda arte se configura de acordo com sua midialidade específica, ou seja, sua materialidade ou meios físicos, que são determinantes no momento da criação, resultando em diferentes modalidades representativas, podendo produzir ou não o mesmo efeito (MOSER, 2007, p. 44-45).
             A teoria de Lessing que ressalta a espacialidade da pintura e a temporalidade da literatura lançou luz sobre aspectos que integram os estudos de intermidialidade. Sabe-se, hoje, que a heterogeneidade produzida no processo de transmidialização é inevitável por se tratar de mídias com especificidades diferentes. Liliane Louvel, por exemplo, no ensaio “A descrição ‘pictural’: Por uma poética do iconotexto”, postula que no deslocamento de um substrato narrativo de um suporte para outro a relação de identidade é impossível, mesmo porque, nesse jogo intermidiático, toda espécie de manipulação é permitida:

A relação de analogia não se reduz jamais a uma relação de identidade. Estabeleçamos que uma descrição será dita ‘pictural’ quando a predominância de ‘marcadores’ da picturalidade, aquilo que faz com que a imagem seja artística, seja um artefato, seja irrefutável [...] Pelo menos, teremos uma emulsão, jamais uma fusão total, seja um iconotexto. Haverá sempre um traço, o vestígio de um no outro. [...] Falaremos de ‘tradução’ ou, antes, de ‘translação’, como a ação de passar de um lugar a outro, de uma linguagem a outra, de um código semiológico a outro. Tratar-se-á de observar os modos de funcionamento desta ‘translação’, de recuperar os traços de heterogeneidade causada pela presença de um medium estranho no medium suporte, graças a marcadores textuais. (LOUVEL, 2006, p. 195-96)


A definição restritiva de ecfrase[1], que nasceu sob os auspícios do Ut pictura poesis de Horácio, passou por revisões radicais na contemporaneidade e teve seu âmbito ampliado. Laura M. Sager Eidt (2008, p. 9) que, em seu livro Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film, analisa quadros de diversos pintores e o tratamento ecfrástico ao qual são submetidos em diversos textos narrativos e filmes, argumenta que “enquanto a tradição restringia a ecfrase a poemas que descrevem ou analisam obras de arte, na atualidade esse termo é aceito e se aplica a todos os gêneros literários, tais como, o romance, o drama e o ensaio”[2], além do cinema, seu objeto de estudo na obra mencionada.
            Em um ensaio intitulado “Ekphrasis Reconsidered: On Verbal Representations of Non-Verbal Texts”, Claus Clüver também se manifesta a favor da expansão do conceito de ecfrase, quando inclui em seu âmbito não apenas textos visuais que abarcam as artes plásticas, mas também textos não visuais como danças e composições musicais. Em seu conceito ampliado, Clüver não faz distinção entre obras de arte reais ou imaginárias, postulando que as verbalizações de textos visuais completamente fictícios e/ou não identificados pelos críticos, mas passíveis de existir, são tão válidas quanto aquelas baseadas em textualidades de existência comprovada”[3] (CLÜVER, 2009, p. 26).




[1] Segundo Peter Wagner, ecfrase é um recurso poético ou retórico antigo que está sendo retomado e redefinido pelos críticos da contemporaneidade. O vocábulo é formado pelo prefixo “ek” ou “ec” que significa “originário de” ou “dentre”, e a raiz phrasis, um sinônimo do grego lexis ou hermeneia, e do latim dictio e elocutio (o verbo phrazein significa “contar, declarar, pronunciar”). Originariamente o termo significava “uma descrição completa e vívida” e apareceu, pela primeira vez, nos escritos retóricos atribuídos a Dionísio de Halicarnasso, tornando-se, em seguida, um exercício de retórica praticado nas escolas (WAGNER, 1996, p. 11-12).
[2] Na versão em inglês: “Whereas traditionally ekphrasis was confined to poems that describe or analyze works of art, it is now generally accepted and used as a term that applies to all literary genres, that is, novel, drama, as well as essay”.
[3] Dois dos mais famosos exemplos de ecfrase literária que descreve objetos fictícios ou pinturas imaginárias  são a descrição do escudo de Aquiles no 18º livro da Ilíada e o retrato metamórfico da obra ficcional de Oscar Wilde, intitulada O retrato de Dorian Gray.


O artigo, na íntegra, foi publicado na Revista Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, 2011, p. 186-198. Disponível em:
http://www.uniandrade.br/mestrado/pdf/Scripta%20Uniandrade%209_N.%201_2011.pdf

sexta-feira, 1 de junho de 2012




CROMATISMO E CONSTRUÇÃO NARRATIVA

O filme Herói (China, 2004), de Zhang Yimou, que perpetua as histórias Wuxia, muito populares na cultura oriental, trata da construção narrativa, usando o cromatismo como principal artifício. O que poderia ser absolutamente simples ganha complexidade no filme, que usa a visualidade do cinema para tornar concreta a história contada por Sem Nome ao rei de Qin, para que, através da narração de seus feitos, possa se aproximar do rei, para matá-lo. O rei, porém, ouvinte astuto, questiona vários detalhes da história que lhe é contada, chegando mesmo a descobrir o real intento de seu interlocutor. A partir da primeira desconfiança do rei, a mesma história ganha novas versões e cada uma delas é representada por uma cor, recurso bastante significativo, já que, do começo ao fim do filme, em uma escala crescente, o rei (e também o espectador) aproxima-se da verdade.
As primeiras cenas, que contam a morte de Céu, dão destaque ao cinza e a um amarelo escuro, consideradas cores neutras e, portanto, indefinidas e pouco vistosas. A partir daí, para explicar a morte dos outros dois personagens, Neve e Espada Quebrada, Sem Nome conta diversas versões, representadas pelas cores vermelha, azul, verde e branca. Como se vê, a ordem vai de um tom quente para tons frios, bem como das cores puras para as misturas, como o verde e o branco, que simboliza a união de todas as cores. Essa progressividade é bastante significativa, porque indica que a história do herói ao rei se faz, na verdade, pela soma dos detalhes e das versões, até chegar à branca, que alude à multiplicidade e, por isso, é a verdadeira, permitindo a correção de alguns desvios feitos pelo narrador, na expectativa de conseguir cumprir sua missão, sem que seu intento fosse, antes, descoberto pelo rei.


O efeito dessa organização narrativa, no filme, coloca em pauta o ponto-de-vista, realçado pela multiplicidade de versões para uma mesma história e pelas cores que o diretor utiliza para apresentá-las. A consequência disso é que, obrigando o narrador a transitar pelos vários fragmentos de sua história, vai-se ampliando o panorama mostrado na película, fora o fato de o espectador ser convidado a participar do instigante jogo de narração e interpretação, travado entre o herói e o rei, igualmente hábeis nas funções que desempenham.


O uso de uma simples história para fazer o filme dá grande relevo ao parentesco inquestionável entre literatura e cinema, pois este, através da cor e do movimento, confere exuberante plasticidade à história. Acrescente-se, ainda, que a relação entre o cromatismo e as diversas versões possibilita o uso de recursos recorrentes na arte literária, como o flashback e a metalinguagem, afinal, o filme vai se construindo à medida que o narrador retoma a história, tornando-a mais clara e verdadeira, a cada nova interferência. Apenas a título de comparação, cite-se Rashomon (Japão, 1950), de Akira Kurosawa, que também investe nas diferentes versões, para tentar elucidar um crime, anunciado logo no início da história.     

(Resumo do trabalho apresentado pela Prof. Dra. Verônica Daniel Kobs, no VI Seminário de Pesquisa da Uniandrade)







domingo, 6 de maio de 2012

DO PARATEXTO AO TEXTO: REVELANDO OS ENÍGMAS DO LIVRO OU “LETRAS E RISCOS IRREGULARES ABRINDO PARA A MARAVILHA”

Eunice de Morais


O Esplendor (Álvaro de Campos, in: Poemas. Heterônimo de Fernando Pessoa)


E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.

(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte),
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos! 

# # # # #

A proposta desta discussão surgiu em meio a uma série de estudos que desenvolvi nos últimos anos, tendo como foco as relações entre a ficção e a história. O contato com o texto da pesquisadora espanhola Célia Fernández Prieto Historia y novela: poética de La novela histórica (2003) me fez voltar o olhar para alguns elementos que acompanham e complementam o texto para compor o que conhecemos hoje como livro. Estes elementos, denominados paratextos por Gérard Genette e “Franjas do texto” por Philippe Lejeune, seriam para Fernández Prieto fontes significativas para desvendar as diferenças e semelhanças, distanciamentos e aproximações entre o romance histórico romântico e o romance histórico pós-moderno.  Um estudo mais aprofundado sobre os paratextos, em especial nas obras literárias, no entanto, pode nos levar a uma série de apontamentos a respeito de sua função e de seu caráter revelador diante das obras que anunciam e/ou enunciam. Será através deles, estas “letras e riscos irregulares” que entraremos a desvendar o mundo maravilhoso dos livros. Assim como nos diz o poema de Álvaro de Campos,, heterônimo de Fernando Pessoa, queremos descobrir o que há de sonho nas encadernações vetustas, nas assinaturas complicadas ou simples dos velhos (e dos novos) livros. 
A definição de paratexto apresentada por Genette em seu Paratextos editoriais (2009 [1987]) nos remete a duas questões importantes, vejamos:

Um texto raramente se apresenta em estado nu, sem o reforço de e o acompanhamento de certo número de produções, verbais ou não, como um nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações, que nunca sabemos se devemos ou não considerar parte dele, mas que em todo caso o cercam e prolongam exatamente para apresentá-lo. (Genette, 2009, p. 9).

A primeira questão nos leva a refletir sobre o passado e nos perguntar: isso sempre foi assim? O livro sempre foi livro tal como se apresenta hoje? Certamente que não. A história desse objeto, o livro, que se modifica em conformidade com a evolução tecnológica, econômica e cultural da humanidade segue acompanhada da história de sua recepção e da leitura. E me parece que essas histórias podem ser contadas através da observação dos paratextos. A segunda questão, essa que nos interessa mais especificamente nesta palestra, ao contrário, nos remete ao presente, pois a meu ver a importância e a quantidade destes elementos que reforçam e acompanham o texto ganharam força no sentido de definir e até de manipular o que quem e como se deve ler. Lembramos, segundo Genette, que:

Com efeito, essa franja, sempre carregando um comentário autoral, ou mais ou menos legitimada pelo autor, constitui entre o texto e o extratexto uma zona não apenas de transição, mas também de transação: lugar privilegiado de uma pragmática e de uma estratégia, de uma ação sobre o público, a serviço, bem ou mal compreendido e acabado, de uma melhor acolhida do texto e de uma leitura mais pertinente – mais pertinente, entenda-se, aos olhos do autor e de seus aliados.

Assim, se Genette apresenta dúvidas sobre se devemos ou não considerar o paratexto como parte do texto, gostaria eu de discutir essa dúvida quando temos diante de nós um romance histórico, para limitarmos o corpus de observação, produzida ou reeditada nas últimas duas ou três décadas. Penso aqui em romances como os biográficos de Ana Miranda, Ângela Dutra de Meneses em O português que nos pariu, João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo Brasileiro, Doc Comparato, em A Guerra das imaginações, Domício Proença Filho, em Capitu, memórias póstumas,, José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta com o Terra Papagalli; penso ainda numa literatura infantil, em que a ilustração deve ser levada tão a sério quanto o texto literário, como temos em Chapeuzinho amarelo, de Chico Buarque ou o instigante e perturbador livro de Paulo Ventureli,  Admirável ovo novo. Para que não nos estendamos muito, apresentamos a leitura de alguns elementos paratextuais presentes em três obras: O Ladrão de raios (2009 2 edição, [2005]), Livro um da coleção Percy Jackson e os Olimpianos, de Rick Riordan e Dias e Dias (2002), de Ana Miranda. Estes romances, marcados foram escolhidos justamente pela diferença que apresentam tanto no plano estético da composição literária (gênero) como no plano intencional proposto pelo estilo de cada produção. A análise dos mesmos nos dará uma boa dimensão do quanto é importante quando não é essencial, hoje mais do que nunca, a leitura destes elementos para a criação de um horizonte de expectativa do leitor em relação à obra, para o estabelecimento de um pacto entre autor-texto-leitor, bem como para a compreensão e interpretação da obra.



terça-feira, 17 de abril de 2012

SHAKESPEARE EM QUESTÃO


Profa. Dra. Anna Stegh Camati



Participação no 40º Encontro Anual da Shakespeare American Association (SAA), em Boston (EUA).

De 5 a 7 de abril de 2012 participei do 40º Encontro Anual da Shakespeare American Association (SAA), em Boston (EUA) e, no dia 7 de abril, tomei parte dos debates no Seminário intitulado “Shakespeare in Public” (Shakespeare inserido na cultura pública), coordenado pela Profa. Dra. Denise Albanese, da George Mason University, com o trabalho intitulado “Brazilianizing Shakespeare for Popular Audiences: The Street Spectacle Sua Incelença, Ricardo III” (Abrasileiramento de Shakespeare para plateias populares:  o espetáculo de rua Sua Incelença, Ricardo III), em co-autoria com a Profa. Liana Leão da UFPR. 

 Imagem da cena de abertura do espetáculo Sua Incelença, Ricardo III


Com base em teorias contemporâneas que consideram a dramaturgia clássica como um espaço privilegiado de negociação cultural, nosso trabalho aborda a tropicalização do texto shakespeariano Ricardo III e a musicalização da cena da produção de teatro de rua do grupo potiguar Clowns de Shakespeare, intitulada Sua Incelença, RicardoIII.  É uma versão lúdica, irreverente e politizada, dirigida por Gabriel Villela que também foi responsável pelo êxito de Romeu e Julieta do Grupo Galpão, apresentado no Teatro Globe em Londres, em 2000. O trabalho discute a estética da cena que privilegia as linguagens paródicas e a mistura de elementos da arte erudita e cultura popular, e reflete sobre a aproximação entre a cultura medieval inglesa e o fenômeno do Cangaço no sertão nordestino. A trajetória sanguinária de Ricardo III, na Inglaterra medieval, é associada às matanças envolvendo coronéis, policiais e cangaceiros nos feudos do Brasil arcaico durante o século XIX e início do XX.  Os paralelos históricos de corrupção e oportunismo, que também remetem ao cenário político brasileiro da atualidade, provocaram risos subversivos na plateia reunida em espaço público. O espetáculo, assim, atingiu seus propósitos críticos ao incorporar temáticas e linguagens em sintonia com a realidade sócio-cultural brasileira, visto que a função da adaptação dos clássicos é promover uma reflexão sobre problemas e inquietações da contemporaneidade.

Global Shakespeares – Video & Performance Archive – Massachusetts Institute of Technology (MIT),  Boston (EUA).

O Global Shakespeares – Video & Performance Archive é um projeto colaborativo que permite acesso online, em âmbito global, a encenações shakespearianas, além de disponibilizar material de ensino e pesquisa elaborado por estudiosos e especialistas. Esse site, em constante expansão, abriga produções shakespearianas digitalizadas do Mundo Árabe, Ásia – Leste e Sudeste, Índia, Brasil, Europa, Reino Unido e Estados Unidos. No dia 9 de abril de 2012, na qualidade de co-editoras do arquivo digital do Brasil, as professoras Liana Leão, Anna Stegh Camati e Cristiane Busato Smith participaram de uma reunião,  para traçar objetivos e metas a serem cumpridas no ano de 2012, com a equipe que idealizou, implantou e gerencia o referido projeto nas dependências do MIT, dentre eles o Prof. Dr. Peter Donaldson, Diretor e Editor-chefe do Arquivo Global Shakespeares e do MIT Shakespeare Project; Suzana Lisanti, Senior Web Communications Stategist e Coordenadora do Projeto; e Belinda Yung, Project Manager e Diretora Técnica do Projeto. Em seguida, sob a  orientação de Suzana Lisanti e Belinda Yung, que generosamente dividiram seus conhecimentos e expertise conosco, foram realizados trabalhos de edição de clips de algumas cenas de montagens brasileiras, com legendas em inglês. A Profa. Liana Leão e eu editamos, em parceria, um clip da cena do balcão do espetáculo de rua Romeu e Julieta do Grupo Galpão que logo estará disponível no site Global Shakespeares (MIT). Acesse o arquivo digital brasileiro que, atualmente, conta com vinte e cinco produções, no seguinte endereço eletrônico: http://globalshakespeares.org/brazil

ABRIL de SHAKESPEARE VI, de 23 a 27 de abril em Curitiba.

Curitiba vem sendo apontada como uma das principais cidades de nosso país que cultivam a arte e a cultura. Após o sucesso de cinco edições do "ABRIL DE SHAKESPEARE" (2006, 2007, 2008, 2009 e 2010), tradicionalmente realizadas na semana do dia 23 de abril, data do aniversário de nascimento e morte de William Shakespeare, o evento, que passou a ser bienal a partir de 2010, já se tornou um marco no calendário cultural de nossa cidade. No corrente ano, as professoras  Anna Stegh Camati (UNIANDRADE),  Liana de Camargo Leão (UFPR) e  Célia Arns de Miranda (UFPR) que organizam e coordenam esse evento inter-institucional desde a sua incepção em 2006, realizarão o “ABRIL DE SHAKESPEARE VI”, de 23 a 27 de abril de 2012, objetivando, principalmente, divulgar e popularizar a obra de Shakespeare e introduzir o público participante no universo multifacetado do autor sob uma ótica contemporânea. Com entrada franca, é dirigido não apenas ao meio acadêmico, professores, alunos de graduação e pós-graduação, mas à comunidade curitibana como um todo e, neste ano de 2012, contará com o apoio e a colaboração das seguintes universidades, instituições culturais e outras: Universidade Federal do Paraná (UFPR), Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE), Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Cultura Inglesa, Solar do Rosário, Casillo Advogados e Country Clube. A programação, que incluirá um mini-curso e palestras seguidas de debates, será desenvolvida por renomados especialistas shakespearianos, respeitados no Brasil e no exterior, oriundos de vários estados brasileiros.
Veja a programação completa do evento na página do Mestrado em Teoria Literária, no site da UNIANDRADE:  <www.uniandrade.br>

segunda-feira, 9 de abril de 2012

REGURGITANDO GARGÓLIOS



Verônica Daniel Kobs


Gelo seco. Névoa. Ruínas. Uma mulher (morta?). Sangue jorrando. Heróis impotentes.

É assim que Gerald Thomas e London Dry Opera Company apresentaram Gargólios. O espetáculo foi encenado na 21ª edição do Festival de Teatro de Curitiba, nos dias 1º e 2 de abril, no Guairinha. O texto reconstrói a peça Throats, para se adaptar a outra cultura e a outro tipo de público.

Work in progress.

Um divã. Vários “heróis”. Freud. Dramas pessoais. Uma mulher ensanguentada ao fundo. Estrondos. Toque de recolher. Cidade vazia.

              

A peça é uma cena-fragmento da tragédia norte-americana mundial de 11 de setembro de 2001. Novo século. O fim de uma era. A queda do símbolo do poder Ocidental. O fato de Nova Iorque ter sido o cenário do ataque terrorista nos diz muita coisa. Lá havia pessoas de todas as partes do mundo. Estávamos todos devidamente representados e experimentamos o horror da catástrofe, ainda que por amostragem.

Memória. Espetáculo-mosaico. Um estudo sociológico. Poder. Política. Religião. Comportamento humano. Sociedade contemporânea.

Várias línguas, com o predomínio do inglês, recriam o cosmopolitismo de Nova Iorque. No toque de um imenso sino invisível, a ambiguidade sinistra: o divino e o anúncio do fim dos tempos. Gerald Thomas é deus, padre e pastor... Além de autor e diretor, foi voluntário no resgate dos corpos das vítimas no episódio do World Trade Center e, no espetáculo, desenhou cenário, figurino, fez gravações em off, participou de pequenos diálogos com os atores e foi também espectador de sua própria história, no canto do palco, próximo à plateia, de onde também executava riffs de guitarra.

Um mordomo encharcado de sangue. Destruição. Heróis que não podem voar. Um parto na rua, em meio à multidão. Insensibilidade e pressa. Vinho: sangue de Cristo e dos homens.

Não existem mais super poderes. O inimigo do mundo é o próprio mundo. E a peça acaba em “festa”, para combinar com o paradoxo do mundo conectado à internet e desconectado de si mesmo. Boa comida invisível, sangue jorrando do teto, do corpo de um soldado abatido em combate, e vinho bem visível, transbordando nos copos, da boca dos personagens que golfavam sobre o palco... Vinho de boas safras, com datas de grandes guerras e revoluções do passado, do presente e do futuro. E Gerald Thomas, brincando de Deus, profetizou pequenos duelos constantes e grandes tragédias, no ano de 2030, ou 2032... 2025... Já não me lembro.

Incomunicabilidade. Ironia do nosso tempo. No lugar da fala, riffs de guitarra. Egoísmo. Indiferença. Impossibilidade. Nostalgia de outros (bons) tempos, em que sentíamos falta do futuro.

Só me lembro da sensação de peso sobre os ombros, durante toda a peça, de um horror prolongado, mesmo sabendo que a realidade tinha sido pior do que aquela encenação e de tudo o que eu já tinha vivido até aquele momento. Medo dos outros, medo da morte. Senti a morte (das grandes catástrofes, dos jornais, dos programas policiais) mais próxima, presente, de modo irremediável. A indiferença me ligava àqueles personagens desprezíveis, que representavam as pessoas desprezíveis da nossa vida real. Mesmo não querendo acreditar naquele retrato da sociedade contemporânea, eu não tinha como negar: É tudo verdade. Vivemos e morremos no fim dos tempos. “O mar não tá pra peixe.”

World in regress.

Imagens disponíveis em:
 
Assista à peça (em versão diferente daquela apresentada no Festival de Teatro de Curitiba) acessando o link: http://geraldthomas.net/h_gargolios.html

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Jornalismo e Monteiro Lobato

Sigrid Renaux   


Se o Jornalismo tem, entre suas funções, coletar, investigar, analisar e transmitir ao público informações da atualidade, a reportagem de Peter Gwin “Rhino Wars” (“Guerra por rinocerontes”), na revista National Geographic (vol.221, no.3, March 2012, p. 106-125), traz um relato e fotografias estarrecedores sobre o que os “poachers” (caçadores furtivos) fazem com os rinocerontes, a fim de obter seus chifres, que rivalizam com o preço do ouro no mercado negro (um chifre de aproximadamente 4 quilos pode render até 360 mil dólares).
Como a legenda da primeira fotografia da reportagem já denuncia,

Os guardas de caça acharam este rinoceronte negro perambulando no Vale Savé de Conservação no Zimbawe, após os caçadores furtivos terem atirado nele diversas vezes e cortado ambos os chifres. Os veterinários tiveram de provocar a eutanásia no animal, porque seu ombro destroçado não podia suportar seu peso. Nos últimos seis anos os caçadores furtivos mataram mais de mil rinocerontes africanos por causa dos chifres, que são contrabandeados para a Ásia para uso na medicina tradicional” (p. 106-7).

Além de duas espécies já extintas em 2011, as cinco espécies ainda existentes de rinocerontes estão sendo ameaçadas tanto pelos caçadores quanto pela perda de habitat na África e Ásia.
Uma outra fotografia mostra uma fêmea, sem o chifre, pastando junto a um macho, com a seguinte legenda:

Uma fêmea de rinoceronte-branco pasta com um macho, que se tornou seu companheiro depois de um ataque de caçadores furtivos na Província de KwaZulu-Natal, África do Sul. Usando um helicóptero, uma gangue   localizou a ela e a seu filhote de 4 semanas, atirou nela com uma flecha tranquilizadora e cortou seus chifres com um serrote. Os guardas florestais acharam-na uma semana mais tarde, procurando seu filhote, que havia morrido, provavelmente de fome e desidratação. (p. 120-121)

Por outro lado, a “guerra” que está sendo travada entre os guardas de caça e os caçadores furtivos é interminável, levando inclusive à morte ou à prisão desses caçadores. Simultaneamente, há também fazendeiros que criam rinocerontes para vender legalmente seus chifres, que são retirados (sob anestesia) por um veterinário. Como os chifres são cortados a 3 polegadas acima da base, eles crescerão novamente em dois anos. Alguns críticos desta prática alegam que ela deixa os animais sem proteção contra predadores naturais. Os favoráveis à retirada dos chifres argumentam que isso detém os caçadores furtivos e reduz o número de rinocerontes que morrem de feridas causadas pelas lutas por território e por companheiros.
Uma outra fotografia mostra o que está sendo feito atualmente pelas autoridades, como consta na legenda:

De olhos vendados e anestesiado, um rinoceronte-negro é transportado num voo de 10 minutos de helicóptero da Província de Cabo Leste na África do Sul para um caminhão que o levará a um novo lar a 900 milhas de distância. Planejado para retirar os animais de uma região difícil, esses voos fazem parte de uma tentativa de realocar os rinocerontes-negros em perigo de extinção em áreas mais apropriadas a fim de aumentar seu número como também sua pastagem natural. (p.108-9)

Esta reportagem - apresentando as diversas facetas de uma realidade que nos choca profundamente, ao vermos o sofrimento e extermínio dos rinocerontes perpetrados pelo homem, por cobiça, mesmo que haja esforços para combater essa prática e auxiliar na recuperação dessa espécie de animais, em perigo de extinção -, faz-nos lembrar de nosso Monteiro Lobato e, especificamente, de Caçadas de Pedrinho. Diante de tanta barbárie, voltemos a ler sobre as aventuras de Quindim (como ele será chamado nas obras posteriores), no Sítio do Picapau Amarelo.
 Como estamos todos lembrados, um rinoceronte havia fugido de um circo de cavalinhos no Rio de Janeiro para as matas da Tijuca, “tomando depois rumo desconhecido” (LOBATO, 1944, p. 60). Como continua Lobato, “esse fato causou o maior reboliço no Brasil inteiro. Os jornais não tratavam de outra coisa. Até uma revolução, que estava marcada para aquela semana, foi adiada, porque os conspiradores acharam mais interessante acompanhar o caso do rinoceronte do que dar tiros nos adversários”, associando assim “ realidade” e ficção e ainda dando uma torção cômica às consequências deste fato.
Quando o rinoceronte chegou à mata virgem do sítio de dona Benta, os “besouros espiões” de Emília a avisaram e a boneca acaba conseguindo, com a ajuda de Cleo, trocá-lo com Pedrinho pelo seu “carrinho de cabrito”. Após terem achado o “monstro” perto da Figueira Brava – numa aventura engraçadíssima, pois, a fim de avistá-lo, treparam numa “pedra preta” que era o próprio paquiderme – , terem retornado ao sítio graças ao pó de pirlimpimpim no bolso de Emília e comunicado a Dona Benta sobre a descoberta, esta, por sua vez, enviou um telegrama ao Rio para que fossem tomadas providências. Para grande susto de tia Nastácia, na manhã seguinte, o animal estava “a vinte passos de distância, olhando para a casa com seus olhos miúdos” (p. 77), “quieto, de cara pacífica, sem mostra nenhuma de ânimo agressivo.(...) Depois, mansamente, dirigiu-se à porteira e lá se deitou de atravessado” (78), já demonstrando, assim, que não havia por que terem medo de um animal selvagem.
Durante as diversas peripécias dos “homens da polícia secreta”, que haviam vindo ao sítio para caçar o animal, mas que na realidade queriam adiar a “caça” para não prejudicarem seus empregos - como a construção de uma linha telefônica e outra de cabos aéreos para transportar “um canhãozinho e uma metralhadora” para atirar no rinoceronte -, o próprio rinoceronte “foi se familiarizando não só com as pessoas do sítio, como ainda com o pelotão de caçadores” e até ajudou os construtores a arrancarem um poste, “trabalhando tal qual um elefante manso da Índia” (86), confirmando, mais uma vez, sua índole pacífica.
O trecho a seguir é especialmente sugestivo da humanidade que Lobato transmite ao rinoceronte, além de acentuar a condição de cativeiro a que são submetidos os animais de circo:

   Emília tornara-se amiga íntima do animalão. Ia sempre à Figueira Brava vê-lo pastar arbustos, e com ele entretinha-se horas, a ouvir casos da vida africana. Era um rinoceronte de boa paz, já velho, com a ferocidade nativa quebrada por longos anos de cativeiro no circo. Só queria uma coisa: sossego. Por isso fugira do circo e viera esconder-se ali, no silêncio do capoeirão dos taquaruçus. (p. 86-7)

Como a conversa entre ambos revela, o rinoceronte “arrepiou-se todo” ao saber que esses homens queriam dar cabo da sua vida: “- Mas por que? Indagou em tom magoado. Que mal fiz eu a essa gente?”. E a resposta de Emilia, como porta-voz de Lobato, revela o motivo pelo qual querem caçá-lo:
- Nenhum, mas você é o que os homens chamam “caça” – e o que é caça deve ser caçado. Quando os homens encontram no seu caminho uma lebre, uma preázinha, um inambu, um pato selvagem ou o que seja, ficam logo assanhadíssimos para matá-lo – só por isso, porque é caça. Mas você não tenha medo que não será caçado. Hei de dar um jeito. (p.87)

Estas palavras nos remetem, por um lado, à denúncia da reportagem acima, na qual os homens exterminam os rinocerontes por cobiça, e, por outro, ao trabalho das atuais sociedades protetoras de animais selvagens, que tentam, como Emília, salvá-los de serem capturados e/ou mortos pelos homens, quaisquer que sejam os motivos: caça, cobiça, crueldade. 
Após o malogro dos tiros de canhão – cuja pólvora Emília havia trocado por farinha de mandioca -, o final feliz da história dá-se não só com a expulsão, pelo rinoceronte, dos homens do serviço secreto, mas principalmente com mudança da vida no Sítio “depois da entrada do rinoceronte para o bando” (p. 93): todas as tardes vinha prosear com Emília e o visconde; depois brincavam de “esconde-esconde, de chicote queimado, de pegador”; e Emília “logo inventou jeito de montar a cavalo no chifre dele para passear pelo terreiro” (93), no que foi seguida, aos poucos, pelos outros: Pedrinho, Cléo, Narizinho, e, por fim, dona Benta.
 Como comenta Lobato, ao dona Benta subir ao carrinho e ser puxada pelo rinoceronte  -“quatro vezes até a porteira, ida e volta”! -, “Se houvesse por ali um aparelho de cinema podia ser tirada a melhor fita do mundo...” (p. 97). Essas palavras refletem, em última análise, sua profunda percepção da importância e do encanto que a convivência pacífica entre homens e animais proporciona a todos nós e, mais ainda, como ele conseguiu transmitir essa mensagem para as crianças e, assim, continuar a conscientizar e sensibilizar leitores no presente e no futuro.
Literatura infantil e jornalismo podem assim unir-se num novo lema “E vivam os Quindins!” 

terça-feira, 27 de março de 2012

Revisitar o mito / Recycling Myths

 Prof.ª Dr.ª Mail Marques Azevedo (Uniandrade).






Participarei de 2 a 4 de maio do Colóquio Internacional Revisitar o Mito/ Recycling Myths, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, organizado em conjunto pelos Centros de Estudos Anglísticos e de Estudos Clássicos da instituição.

Os tópicos preferenciais de intervenção do evento incluem desde a origem dos mitos até sua relação com a ciência, a ética, a política, a psicanálise, a religião e a filosofia, além das relações interartes e, no campo especificamente literário, os mitos e os contos populares e de fadas, questões de gênero, a recepção dos mitos, e o mito no pós-modernismo. O elevado número de inscrições, que traduz o interesse despertado pelo amplo espectro da temática. levou os organizadores a estender a duração do evento.

Desprezado pela historiografia positivista, o mito passa a ser revalorizado pelo movimento romântico do século XIX, como “construção simbólica portadora de um sentido e de um ancoramento afetivo no real.” Assim, é objetivo do colóquio verificar como “os mitos se afirmam e se recriam, inquirir acerca dos múltiplos laços que, individualmente e politicamente, os homens e as sociedades estabelecem com os mitos” (Citado do material eletrônico de divulgação).

Para tema do meu trabalho, escolhi a sobrevivência de estruturas míticas, em ícones dos grupos sociais no século XXI criados pela mass media, que cumprem ainda hoje sua função de narrativas de valor paradigmático para as atividades humanas, e de lembrete constante da existência das realidades absolutas (ELIADE, 1972). Inicialmente, observa-se como as narrativas míticas que, gradativamente, perdem o caráter sagrado de explicação verdadeira para dar origem a formas convencionais como os contos folclóricos, de fadas e histórias de terror, representam, nesta última forma, uma tendência atual acentuada.

É de conhecimento comum que histórias sobre monstros, bruxos, lobisomens e outros seres sobrenaturais estão na ordem do dia, um veio explorado por uma sucessão de autores, elevados instantaneamente à categoria de best-sellers. Desde que J.K. Rawlings publicou, em 1997, Harry Potter e a pedra filosofal, o primeiro de uma série de oito volumes, cujas vendas atingiram a espantosa cifra de um bilhão de exemplares, observa-se uma intensificação do gosto popular por narrativas de terror, apropriadas por diferentes mídias, especialmente pelo cinema.

Na versão americana do sobrenatural para adolescentes, que não se fez esperar, a série Crepúsculo, igualmente transformada em filme, a autora Stephenie Meyer cria uma fantástica história de amor entre uma jovem, Bella Swan, e um vampiro, Edward Cullen, rapaz de bela aparência que, apesar do amor pela heroína, não consegue superar a atração atávica por sangue. O herói-vampiro cede a seus instintos apenas no dénoument do romance, quando a heroína faz a opção pelo tenebroso mundo do amado.

Na opinião da ala jovem feminina de minha família aos dezesseis anos, leitora ávida da série Crepúsculo e espectadora fiel dos filmes o melhor mesmo é o livro que está lendo agora, Jogos vorazes, da norte-americana Suzanne Collins. Ao ler a crítica do filme, baseado no romance, ambos já lançados no Brasil, senti-me de início repelida pela temática central. Em um mundo pós-apocalíptico, um estado autoritário domina os cidadãos pelo terror: a cada ano, as doze regiões que constituem o país devem enviar dois adolescentes, escolhidos por sorteio, para um combate mortal, no centro de controle absoluto, a nefanda Capital do país. Os vinte e quatro adolescentes devem guerrear entre si, até que apenas um deles permaneça vivo.

Ao ler as declarações da autora sobre a inspiração da trama no mito grego de Teseu e o Minotauro, que admira desde a infância, percebe-se a diferença do impacto provocado por uma narrativa da mitologia grega, a milênios de distância, e sua transformação em um romance atual (embora situado em um vago tempo futuro) e nas imagens muito presentes da projeção cinematográfica. A referência ao mito lança nova luz sobre os Jogos vorazes .É evidente que o caráter de narrativa exemplar desaparece na versão reciclada do mito grego, que não provoca o efeito esperado de respeito a hierarquias nem de temor do castigo. Revela-se, no entanto, uma força de atração poderosa para os espíritos jovens que nela encontram algum tipo de resposta para as questões essenciais da vida humana: por que viver e por que morrer. O emprego do mito apela para a herança atávica de todo ser humano, o inconsciente coletivo da espécie, na nomenclatura de Jung.

Embora o mito tenha perdido o caráter de explicação primordial, está cada vez mais enraizado em nossa tradição cultural e em toda a literatura mundial. A esse respeito, W.R. Irwin enfatiza a busca empreendida pelo romancista moderno por uma mitologia adequada, “utilizando mitologias herdadas, ou criando suas próprias mitologias, por vezes retrabalhando o material da tradição” (IRWIN, 1976, p. 159-60). Possivelmente Irwin se refere a praticantes da “alta literatura”, mas suas considerações se aplicam aos exemplos da literatura de caráter popular discutidos acima.

Tanto Harry Potter, como os protagonistas de Crepúsculo e Jogos vorazes saem vitoriosos das batalhas que devem empreender contra forças superiores, sobrenaturais ou não. Esta, segundo Eric Rabkin, é uma das funções dos mundos fantásticos: oferecer segurança e estabilidade como alternativas ao mundo real de flutuação e crescimento. As narrativas fantásticas sempre terminam por assegurar a ordem, mostrando que, a despeito de monstros e dragões, ou dos elementos apavorantes dos contos de terror, o mundo da fantasia é um mundo seguro. E é este mundo seguro que minha jovem leitora e seus pares buscam nas versões recicladas do mito na ficção atual.




REFERÊNCIAS

ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.

IRWIN, W.E. The Game of the Impossible. Urbana: Un. of Illinois Press, 1976.

RABKIN, E. The Fantastic in Literature. Princeton: Princeton Un. Press, 1977.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Análise discursiva da música “Festa da Música” (1997), composição de Gabriel, O Pensador.

Prof.ª Dr.ª Eunice de Morais


O CD Quebra-cabeça (PENSADOR, Sony music,1997) é marcado por uma variedade da problemática social brasileira vivida no ano antecedente ao da sua publicação, quando a fome, o desemprego, a saúde, a educação e a cultura em geral do país estavam recheadas de promessas e vazias da prática (e este clima perdura).
A Música “Festa da Música” (número 11 do disco) vem com o tom polêmico e alegre do Hip Hop brasileiro e faz uma homenagem, segundo o compositor, “a todos que estiveram, estão ou estarão um dia na festa da Música popular brasileira”, lembrando  que “esta é uma obra de ficção” para aqueles que por ventura não se derem por satisfeitos com a forma como foram citados na obra.
O discurso de Gabriel é, já de início, o do sujeito discriminado por representar a classe econômica baixa que depende do transporte coletivo para ir à festa ( 175 – linha  de ônibus que passa pela Rua Antônio Carlos Jobim no Rio de Janeiro). Há aí a sua primeira identificação com o público referencial do discurso, que se completa com a idéia dos “barrados no baile” apresentada já  por Eduardo Dusek há alguns anos atrás. A discriminação continua com Gilberto Gil (negro e nordestino) entre outros representantes que vão “penetrar” na festa com Gabriel, que não tem nem mesmo convite.
A partir daí as características pessoais de cada representante da MPB será apresentada, por vezes citando trechos de músicas (“E aí Sandra de Sá! Bye Bye tristeza...”). A citação da presença do Tiririca e da ausência dos críticos que foram também barrados no baile lembra o fato de o cantor ter sido severamente repudiado pelos mesmos e ainda assim ter conquistado seu lugar na mídia (dona da festa) ainda que como modismo.
Ao referir-se à festa da música como “tupiniquim”, termo utilizado até mesmo por Oswald de Andrade em relação à arte brasileira como reflexo da origem  e pela criação de uma identidade nacional, o sujeito produtor do discurso retoma este questionamento sobre o que é originalmente brasileiro e sobre a diversidade da criação artística no país. Isto fica claro quando o texto apresenta representantes de todos os estilos musicais que compõem a história da nossa  música popular reunidos numa festa que acontece no Rio de Janeiro ( palco de grandes acontecimentos musicais) e numa rua com o nome de um dos grandes representantes da música Antônio Carlos Jobim. O clima de descontração e alegria, característicos do brasileiro, é ininterrupto, mesmo quando é citada a “presença” de Renato Russo como “um dos donos da festa” que está “no andar lá de cima”; há mortos que sobrevivem pela voz de outros e participam desta festa que é a música popular brasileira. O termo ‘festa’ no texto pode ser entendido, numa leitura inocente e até primária, como reunião comemorativa; mas também há um sentido negativo para o termo que indica lugar onde se faz o que quer e como se quer. Com este sentido, entende-se o discurso crítico, como não poderia deixar de ser, do compositor em relação ao caos que é o espaço e a falta de identidade da MPB, onde até Michael Jackson (que esteve no Brasil em 1996 para gravar cenas de seu clip musical) poderia roubar a cena, estar em primeiro lugar na mídia e se não o fez foi porque “uma brasília amarela dobrava a esquina”, lembrando o acidente com o avião que levava a banda “Mamonas assassinas” acontecido no mesmo ano e que, sendo algo trágico, no Brasil vende mais que qualquer acontecimento artístico. 
Depois deste relato sobre a festa tupiniquim da MPB, fica claro que o que importa não é o talento, o trabalho ou a arte brasileira, mas o que vende publicidade e o que não vende, o que está dentro e o que está fora da mídia ou da moda que a mídia cria e divulga.
A diversidade discursiva de Gabriel está dentro e fora do seu texto. Dentro porque relaciona estilos e vozes num mesmo espaço e tempo. A festa acontece num tempo indefinido que começou há muito tempo e não tem hora pra acabar e entre os presentes estão desde Gilberto Gil até Tiririca, representando públicos diversos e leituras diversas sobre o que é arte popular brasileira. Essa diversidade está também fora do texto, pois Gabriel usa uma linguagem habilmente informal e adequada ao ritmo do Hip Hop. A linguagem próxima da oralidade relaciona seu caráter polêmico e crítico aos fatos atuais e históricos daqueles que participaram ou que participam de um momento em que a música mistura seus valores estéticos e culturais a valores capitalistas ditados pela mídia brasileira, a verdadeira dona da “festa” em que se encontra nosso país.

FESTA DA MÚSICA Compositor: Gabriel, O pensador, C.D.: Quebra – Cabeça-Gravadora: Sony Music / 1997

HÁ MUITO TEMPO TÁ ROLANDO ESSA FESTA MANEIRA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
NINGUÉM ME CONVIDOU MAS EU QUERIA ENTRAR, PEGUEI O 175 E VIM DIRETO PRA CÁ
NA PORTARIA, O SEGURANÇA PEDIU O CRACHÁ DO GILBERTO GIL.
ELE APENAS SORRIU ACOMPANHADO POR CAETANO ,DJAVAN, PEPEU, ELBA, MORAES, ALCEU VALENÇA (XÁ COMIGO! DÁ LICENÇA!
ABRE ESSA PORTA CABRA DA PESTE) E FOI ASSIM QUE EU PENETREI COM A GALERA DO NORDESTE
BABY TÁ NA ÁREA , SENTI FIRMEZA! E AÍ SANDRA DE SÁ! – “BYE  BYE TRISTEZA ...”
BIRINIGHT À VONTADE A NOITE INTEIRA
OLHA O ED MOTTA ASSALTANDO A GELADEIRA
OLHA QUANTA GATA BONITA E GOSTOSA!
OLHA O TIRIRICA COM UMA NEGRA CHEIROSA 
UÉ! CADÊ OS CRÍTICOS?! NINGUÉM CONVIDOU? “BARRADOS NO BAILE UOUOU” 
NÃO É FESTA DO CABIDE, MAS O NEY TIROU A ROUPA 
BZZZ... PAULINHO MOSKA POUSOU NA MINHA SOPA 
CIDADE NEGRA APRESENTOU UM REGGAE NOTA CEM
TÁ ROLANDO UM SKANK TAMBÉM!
E O TIM MAIA ATÉ AGORA NEM PINTOU MAS O JORGE BENJOR TROUXE A BANDA QUE CHEGOU  “PRA ANIMAR A FESTA” 

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM QUE TÁ ROLANDO AQUI NA RUA ANTÔNIO CARLOS JOBIM 
TODO MUNDO TÁ PRESENTE E NÃO TEM HORA PRA ACABAR
 E MUITA GENTE AINDA TÁ PRA CHEGAR 

A FESTA TÁ CORRENDO BEM
O LOBÃO ATÉ AGORA NÃO FALOU MAL DE NINGUÉM
O BARÃO E OS TITÃS TÃO TOCANDO RAULZITO 
A RITA LEE TÁ VINDO ALI...
ÃNH? NÃO ACREDITO! ELA OLHOU PRA MIM E DISSE “BAILA COMIGO”
EU SENTI AQUELE FRIO NO UMBIGO
MAS É CLARO QUE ADOREI O CONVITE 
E FUI DANÇAR OUVINDO O SOM DO KID ABELHA, PARALAMAS E A BLITZ ( ISSO AQUI TÁ MUITO BOM, ISSO AQUI TÁ BOM DEMAIS...)
“SEGURA O TCHAN, AMARRA O TCHAN” (XÔ, SATANÁS!)
HÁ HÁ! LULU SANTOS ACABOU DE CHEGAR COM A PIMENTA MALAGUETA PRO PLANETA BALANÇAR O CHICO CESAR, SCIENCE, E O BUARQUE OBSERVAM UM PESSOAL DANÇANDO BREAK NO CHÃO 
E NO ANDAR DE CIMA UM DOS DONOS DA FESTA TA NA BOA TÁ EM PAZ, TÁ TOCANDO UM VIOLÃO: “FESTA ESTRANHA COM GENTE ESQUISITA, EU NÃO TÔ LEGAL, NÃO AGUENTO MAIS BIRITA”

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM
QUE TÁ ROLANDO AQUI NA RUA ANTÔNIO CARLOS JOBIM 
TODO MUNDO TÁ PRESENTE E NÃO TEM HORA PRA ACABAR
E MUITA GENTE AINDA ESTÁ PRA CHEGAR

CHOPP NA TULIPA, VINHO NA TAÇA
( CAMISINHA NA BOQUINHA DA GARRAFA!) ...
SALVE-SE QUEM PUDER! 
IH... O JOÃO GORDO VOMITOU NO MEU PÉ
FUI LIMPAR E DEI DE CARA COM OS RAIMUNDOS
QUE ME CONTARAM QUE ENTRARAM PELOS FUNDOS
PERGUNTEI PELO BANHEIRO E FIZ PAPEL DE MANÉ
OS SACANAS ME MANDARAM PRO BANHEIRO DE MULHER
AS MENINAS TAVAM LÁ
E FOI SÓ EU ENTRAR QUE A CÁSSIA ELLER, ZIZI POSSI E A GAL COMEÇARAM A GRITAR (AHHHHH!) QUANTA SAÚDE!
FERNANDA ABREU, DANIELA MERCURY, MARISA MONTE, DAÚDE... CALMA, EU NÃO VI NADA! 
A ÂNGELA RÔ  RÔ QUERIA ME DAR PORRADA
MAS OS TRÊS MALANDROS, MOREIRA, BE -  ZERRA E DICRÓ,
ME AJUDARAM A ESCAPAR DO PIOR FUI PRO FUNDO DE QUINTAL,
CASA DE BAMBA TODO MUNDO BEBE TODO MUNDO SAMBA 
BETH CARVALHO, ALCIONE, ZECA PAGODINHO, NEGUINHO DA BEIJA –FLOR...
DIZ AÍ MARTINHO! COMÉ QUE É , PROFESSOR? –
“É DEVAGAR, É DEVAGAR, DEVAGARINHO”

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM
QUE TÁ ROLANDO AQUI NA RUA ANTÔNIO CARLOS JOBIM
TODO MUNDO TÁ PRESENTE E NÃO TEM HORA PRA ACABAR
 E MUITA GENTE AINDA TÁ PRA CHEGAR

ESSA FESTA É UMA LOUCURA
OLHA LÁ O CARLINHOS BROWN COM O PESSOAL DO SEPULTURA
VIERAM COM OS ÍNDIOS XAVANTES
E A POLÍCIA VEIO ATRÁS TENTANDO DAR FLAGRANTE 
E-E-E-Ê! O INDIO TEM APITO E EU NÃO ENTENDI PORQUÊ 
COMEÇARAM A APITAR QUANDO A POLÍCIA CHEGOU 
MAS A GALERA DO CACHIMBO DA PAZ NEM ESCUTOU
PORQUE O OLODUM TAVA FAZENDO UM BATUQUE MANEIRO
ATÉ  O LEANDRO E LEONARDO DE MC! 
E O ZEZÉ DI CAMARGO E O LUCIANO FICARAM ZUANDO
E O FUNK ROLANDO!  AAH... VOCÊS TINHAM QUE VER!
CHITÃOZINHO E XORORÓ GRITANDO UH! TERERÊ! 
O PESSOAL DA JOVEM GUARDA AGITANDO SEM PARAR
ESTAVAM EM OUTRA FESTA MAS VIERAM PRA CÁ
PASSEI ALI POR PERTO E OUVI O ROBERTO COMENTAR:
“Ê HEI! QUE ONDA, QUE FESTA DE ARROMBA!”
TODO MUNDO NO MAIOR ASTRAL
MAS ROLOU UM BOATO QUE PREOCUPOU O PESSOAL
DIZIAM AS MÁS LÍNGUAS, À BOCA PEQUENA,
QUE O MICHAEL JACKSON TAVA CHEGANDO PRA ROUBAR A CENA
E FOI AÍ QUE A MARINA OUVIU UMA BUZINA
E TODOS FORAM PRA JANELA NA MAIOR ADRENALINA
UMA BRASÍLIA AMARELA DOBRAVA A ESQUINA 
ADIVINHA QUEM ERA?

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM...  
               

“Obs.: Esta obra de ficção é uma homenagem a todos que estiveram, estão ou estarão um dia na festa da música brasileira”. (GABRIEL, O PENSADOR)


(Este texto foi elaborado, em 2000, durante o curso de Especialização em Linguística Aplicada ao ensino de Língua Materna, UFPR)