Verônica Daniel Kobs
Como resultado de um processo natural e involuntário, todo artista torna-se vítima de si próprio. O sucesso, na pintura, na tevê, na literatura ou em qualquer outra arte, faz com que o público crie para o artista um personagem que deve entrar em cena sempre que ele estiver fora de sua esfera privada. O artista parece ganhar as qualidades do conjunto de sua obra e, como todo fã vê mais qualidades que defeitos, o artista se transforma quase em um super-herói. A idéia de que, depois de voar, salvar mocinhas indefesas e combater o crime, ele volta a ser o atrapalhado Clark Kent é sempre estranha; quase inaceitável. Ana Cristina Cesar, no livro Literatura não é documento, analisou alguns filmes sobre escritores e seus textos. Um deles, sobre Manuel Bandeira, mostrava a rotina não do escritor, mas do homem comum. Ele calçava os sapatos, saia para comprar pão, etc., etc. Evidente que o público estranhou: “Ele escreve e ainda faz todas essas coisas triviais?” A resposta é obvia, mas, inusitadamente, o estranhamento sempre ocorre.
O filho eterno, romance de Cristovão Tezza lançado em 2007, desconstrói a aura imaculada que envolve todo escritor e torna as imagens de artista e homem comum indissociáveis, na cabeça da maioria dos leitores. Tezza é desmistificado, visto sob outra ótica. Claro que o próprio autor permitiu isso, anunciando que o livro traria parte de sua vida. Ato de coragem, pois, revelando o caráter autobiográfico da narrativa, ele seria julgado, pelos diferentes tipos de leitores que existem, não só como escritor, mas como homem comum. Interessante, no entanto, foi a estratégia traçada para a escrita do romance: a escolha de um narrador em terceira pessoa. Se, por um lado, isso contou pontos no processo criativo da obra, pela racionalidade e pela isenção, que seriam radicalmente diminuídas, se o narrador tivesse a parcialidade da primeira pessoa, gerou um paradoxo: por que o distanciamento, se o tema é sua própria vida?
Como, de certo modo, essa pergunta já foi respondida (aqui e também pelo autor, nas entrevistas que deu, na época do lançamento do livro), deve-se ressaltar o efeito desse distanciamento. A narrativa é analítica. Tezza, ao optar por um narrador imparcial, torna-se voyeur de si próprio. Analisa suas atitudes, suas palavras e, o que é de suma importância, com a maturidade que outro distanciamento, o temporal, lhe assegurou. Desse modo, O filho eterno é sinônimo de “conhecimento”. O leitor conhece um pouco mais do autor, vasculhando, com a devida permissão, sua vida pessoal; o pai conhece mais o filho, cujo comportamento ele analisa com detalhes, em diversas partes do romance, em passagens saborosíssimas, de muito humor; e o autor, transmutado em personagem, também se conhece, desvendando-se a cada linha escrita.
É notável o cuidado de Tezza, ao escrever a história, respeitando os limites estabelecidos por balizas invisíveis, inseridas no texto, do começo ao fim. Importam o pai e o filho. Os demais personagens aparecem apenas quando estritamente necessário, o que confere certa densidade aos protagonistas e às situações vividas por eles, sobretudo pelo pai. Nesse aspecto, o livro também é desmistificador, porque encara a paternidade com frieza e até com crueldade. Mas isso não chega a ser negativo. É, ao contrário, essencial, para se opor à visão romântica de casamento, filhos e uma família feliz, como se essa sucessão fosse absolutamente normal. Na página 73 do romance, há um trecho forte, inusitado, que começa assim: “A primeira criança de um casamento é uma aporrinhação monumental [...].” Isso, para os leitores habituais dos romances de Tezza, soa bastante familiar. Já em Trapo o protagonista escrevia, em seus ensinamentos a Rosana: “A família é o templo do demônio.”
Ler O filho eterno é relembrar a leitura de outros livros do autor, o que sustenta a tese de que cada novo livro de um autor é um palimpsesto, em que a história inédita é escrita sobre os restos das que a antecederam, das quais sempre é possível achar um vestígio ou outro. A imagem do pai, por exemplo, ecoa em Trapo, em A cidade inventada, em Juliano Pavollini e em muitos outros. Com Juliano o pai de “O filho eterno” também tem em comum um sótão cheio de livros e uma curiosidade imensa. A experiência com o teatro, explicitada em vários trechos da obra recém-lançada, retoma Ensaios da Paixão. Além, disso, o personagem do pai, na juventude, era motorista de um pequeno grupo de atores, que dividiam espaço com “pedaços de cenário”. Isso, com algo a mais, remete a Suavidade do vento.
Outras associações são possíveis, mas é melhor parar por aqui, pois O filho eterno é inventário; peça-chave para a leitura dos demais romances do autor. Ou seriam os outros peças-chave para o desvendamento deste? Não importa. O que importa é que todos se assemelham em um ou em outro traço, como na alternância costumeira, por exemplo, e na certeza de que sempre é possível, em maior ou menor escala, achar marcas da presença do autor empírico, do homem comum, refratada nas histórias. Obviamente, essa não deve ser a principal e primeira preocupação do leitor, mas o desafio revela-se um agradável e instigante passatempo, extremamente comum, aliás, na pós-modernidade. Então, nesse jogo, para passar de fase, é só seguir atentamente as pistas, e elas são muitas: a vida em comunidades, a ilha da Cotinga e sua similaridade com o cenário dos livros de Wilson Rio Apa, os poemas adolescentes, as incursões pela pintura e tantas outras que ainda estão por ser desvendadas.
O filho eterno, de Cristovão Tezza. Editora Record, 2007, 224 páginas. |