“OS MORTOS”: O CONTO DE JOYCE E O FILME DE HUSTON



Brunilda T. REICHMANN, PhD

Resumo: Utilizando as teorias de adaptação fílmica de Robert Stam, Brian McFarlane, Linda Hutcheon, entre outros, este artigo trabalha as transferências, adaptações, interpolações utilizadas por John Huston em sua adaptação fílmica do conto “Os mortos” de James Joyce, intitulada “Os vivos e os mortos”, em português. Tanto o texto ficcional quanto o fílmico retrata relações sociais e íntimas da sociedade irlandesa do início do século XX. Tendo como pano de fundo o severo inverno em Dublin de 1904, na primeira parte da narrativa (ficcional e fílmica) “participamos” do evento social promovido pelas irmãs Morkan e pela sobrinha Mary Jane, na passagem do ano. Huston intensifica a dramaticidade do evento ao incluir no filme um novo personagem, Sr. Grace, que declama um poema trágico traduzido do irlandês por Lady Gregory, enriquecendo assim ainda mais o caráter multimidial do filme. Na segunda parte, a narrativa volta-se para o “desencontro emocional” do casal Conroy, Gabriel e Gretta, sobrinhos das irmãs Morkan. O crescente afastamento e nostalgia de Gretta vão de encontro ao crescente desejo e expectativas do marido, que acaba por ouvir da esposa a revelação de um acontecimento trágico de sua juventude.

Palavras-chave: Narrativa ficcional e adaptação fílmica.



Este artigo tem como objetivo refletir sobre a adaptação do conto “Os mortos”, de James Joyce, um dos maiores escritores em língua inglesa do início do século XX, para o cinema por John Huston. O conto de Joyce, escrito durante a primeira década do século XX e publicado em 1912, explora aspectos da sociedade irlandesa do início daquele século. O filme “Os vivos e os mortos”, de Huston, sua última produção, foi realizado durante os meses que antecederam sua morte em 1987. A diegese do conto e do filme compreende apenas algumas horas durante as festas de passagem de ano na residência das irmãs Julia e Kate Morkan e da sobrinha Mary Jane. Estamos em 1904 e a neve cobre a cidade de Dublin.
            As irmãs Julia [Cathleen Delany] e Kate Morkan [Helena Carroll] e a sobrinha Mary Jane [Ingrid Craigie] oferecem o jantar anual em sua casa em Dublin nas festas de final de ano. Há uma preocupação constante com a chegada de Freddy Malins [Donal Donnelly], porque ele poderá estar embriagado, e de Gabriel Conroy [Donal McCann], por ser o sobrinho preferido e porque as tias acreditam que ele é capaz de conter Freddy. Os convidados chegam e músicas são executadas ao piano, convidados dançam e tia Júlia canta “Arrayed for the Bridal” [“Pronta para as bodas”]. Logo após o jantar, Gabriel faz um pequeno discurso no qual enaltece as qualidades das três anfitriãs (ver Figura 1). Na saída, Gabriel sente um crescente desejo por sua esposa, Gretta [Anjelica Huston], principalmente ao percebê-la distante. Ao chegarem ao quarto de hotel, onde passarão a noite, Gretta faz uma revelação ao marido. Ela adormece e ele entrega-se a devaneios sobre a revelação de Gretta, a morte iminente da tia Julia e a neve que cai suavemente na Irlanda, sobre todos os vivos e os mortos.

 
  Figura 1: Cena do discurso no final do jantar.

Ao explorarmos a adaptação de um texto literário para a linguagem fílmica, podemos nos deter em vários aspectos. Neste trabalho o que mais interessa é a transferência ou transformação (classificada como “adaptação”, por Brian McFarlane), interpolação ou exclusão, ênfase ou enfraquecimento, pela qual passa o texto-fonte ao ser adaptado para o cinema. Linda Hutcheon afirma que

Assim como retrabalhos extensos e abertamente reconhecidos de outros textos em particular, adaptações são comumente comparadas a traduções. Assim como não há tradução literal, não pode haver adaptação literal. […] A transposição para outra mídia, ou mesmo movimentar-se “por dentro” da mesma, sempre significa modificar, ou, segundo a linguagem da nova mídia, “reformatar”.[1] (HUTCHEON, 2006, p. 16)

Alguns dos elementos textuais podem funcionar como elementos facilitadores na “reformatação” do texto para a tela, como, por exemplo, a linearidade da narrativa; o espaço de tempo da diegese, que cobre apenas algumas horas; o uso de diálogos e as descrições minuciosas em determinados momentos do conto. Por outro lado, o texto contém também passagens de fluxo de consciência, como o monólogo interior, que podem dificultar a adaptação. Huston soluciona as dificuldades do texto de modo bem convencional: enquanto o espectador visualiza a imagem imaginada pelo personagem, escutamos a voz de Gabriel em sua tentativa de lembrar passagens importantes do discurso que fará depois do jantar, sua opinião sobre as pessoas presentes, seus devaneios sobre o futuro e o passado revelado por Gretta, sua esposa. Este recurso denominado voice over é uma técnica bastante usada por cineastas para tornar audível no cinema os pensamentos não expressos oralmente pelas personagens.
O texto de Joyce é estruturado em dois momentos interligados por um interlúdio narrativo: o jantar na casa das irmãs Morkan e a presença de Gabriel e Gretta no quarto de hotel. Unindo esses dois elementos temos algumas falas de Gabriel para Gretta enquanto a charrete os leva até o Hotel Gresham, onde irão passar a noite. Este momento na charrete seria o interlúdio. No filme, esses momentos são mantidos, até pela linearidade ou cronologia da diegese que facilita de certa maneira a adaptação. Huston apenas os transfere, como estrutura, para outra linguagem, a linguagem cinematográfica. Nem por isso, nossa discussão sobre o filme de Huston deter-se-á na fidelidade ao texto de Joyce, pois o cineasta recria o texto dentro da linguagem específica do cinema. Robert Stam em Introdução à teoria do cinema (2003, p. 234) afirma:

As discussões mais recentes sobre as adaptações cinematográficas de romances passaram de um discurso moralista sobre fidelidade ou traição para um discurso menos valorativo sobre intertextualidade. As adaptações localizam-se, por definição, em meio ao contínuo turbilhão da transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de reciclagem, transformação e transmutação.

Primeiro momento
As irmãs Morkan mostram-se ansiosas, no início do texto e do filme, pela chegada do sobrinho preferido Gabriel, principalmente porque querem encarregá-lo de conter Freddy, que está usualmente embriagado e poderá tornar-se inconveniente. E inconveniente ele será, devido a seu comportamento, seus elogios exagerados, suas opiniões inoportunas.

Lily, a filha do zelador, estava literalmente esgotada. Mal acabava de conduzir um convidado à pequena sala nos fundos do escritório e a impaciente sineta da entrada tornava a soar, obrigando-a a precipitar-se pelo corredor vazio para receber um novo hóspede. Ainda bem que não precisava atender as mulheres. Senhorita Kate e senhorita Júlia tinham pensado nisso e convertido em vestiário o banheiro de cima. As duas, em grande agitação, riam e tagarelavam sem parar, revezando-se a todo momento no topo da escada, de onde perscrutavam a entrada e perguntavam a Lily quem havia chegado. (p. 143)[2]

No texto, o casal Conroy é o primeiro a chegar depois da abertura do conto; no filme várias pessoas chegam até que finalmente Lily anuncia a chegada do casal Gabriel e Gretta Conroy. Este recurso, na linguagem fílmica, serve para facilitar a visualização da ansiedade das irmãs Morkan. A movimentação da chegada das pessoas diferentes no filme anima ainda mais o início do festivo jantar.
Sem dúvida, tinham muitas razões para estarem agitadas numa noite como aquela. Passava das nove e nem sinal de Gabriel com a esposa. Por outro lado, tinham um medo terrível que Freddy Malins aparecesse bêbado. Não queriam, por nada deste mundo, que as alunas de Mary Jane o vissem nesse estado, quando, geralmente, era difícil controlá-lo. Freddy sempre chegava tarde, mas não compreendiam porque Gabriel se atrasava. E era isso que as trazia à escada de dois em dois minutos, perguntar a Lily se Gabriel ou Freddy tinham chegado. (p.144)

Na chegada de Freddy no texto, Gabriel encarrega-se de recebê-lo, e não os vemos mais até o encontro com as irmãs Morkan e a conversa entre Freddy e Mr. Browne.

– Por favor, corra lá embaixo e veja se Freddy está bem. Não o deixe subir se estiver embriagado. Tenho certeza de que está bêbado, tenho certeza.
Gabriel aproximou-se da escada e ficou escutando. Duas pessoas conversavam na saleta. Reconheceu então a risada de Freddy Malins. Desceu a escada estrepitosamente.
– É um alívio tê-lo conosco – disse tia Kate – Sinto-me sempre mais tranqüila quando Gabriel está aqui... (p. 148)

No filme, Huston faz uma interpolação ou acrescenta uma cena na qual Gabriel conduz Freddy ao banheiro para que se recomponha um pouco, visto que está, como esperado, embriagado. No texto e no filme, depois dessas primeiras cenas com Gabriel, que finalmente leva Freddy até a Sra. Malins, sua mãe, Freddy está por sua conta para transitar entre os presentes. Sua presença continua a causar tensão e constrangimento, como no momento em que elogia exageradamente a voz da tia Júlia ao cantar “Pronta para as bodas” ou quando fica indignado porque ninguém conhece um tenor negro cuja voz aprecia. Essas passagens são transferidas para o filme. O ator – Donal Donnelly – rouba a cena sempre que aparece e é responsável pela comicidade e constrangimento das irmãs Morkan nesta primeira parte do filme (ver Figura 2).

Figura 2: Freddy Malins [Donal Donnelly]

Enquanto Mary Jane executa sua peça clássica de piano, os olhos de Gabriel percorrem o ambiente e o descreve minuciosamente, fornecendo assim material para um travelling da câmera que apreende os objetos descritos, agora observados pelo espectador. O pensamento de Gabriel em voice over acompanha o movimento da câmera. No texto:
Os olhos de Gabriel, feridos pelo reflexo do lustre no assoalho encerado, vagavam pela parede atrás do piano. Havia ali um quadro da cena do balcão de Romeu e Julieta e, ao lado, um quadro dos dois principezinhos assassinados na Torre, que tia Júlia bordara com lã vermelha, azul e marrom, quando era criança. Certamente elas haviam aprendido esse gênero de trabalho durante um ano inteiro, na escola que freqüentaram. Sua mãe bordara-lhe, como presente de aniversário, num colete de moire púrpura, forrado de cetim vermelho e com botões em forma de amora, pequenas cabeças de raposas. Era estranho que ela não tivesse talento para música, embora tia Kate costumasse chamá-la o cérebro da família Morkan. Tanto Kate quanto Júlia sempre demonstraram certo orgulho pela irmã grave e imponente. Havia um retrato dela perto do espelho. Tinha com um livro aberto sobre os joelhos e mostrava alguma coisa a Constantine que, vestido à marinheira, estava sentado a seus pés. (p. 152)
Gabriel ainda se entregará a devaneios durante e no final do conto quando pensa na morte iminente da tia Julia e Huston nos faz assistir à cena enquanto, em voice over, Gabriel descreve o velório. O cineasta transforma, portanto, alguns dos devaneios do protagonista em cenas a serem assistidas pelo espectador. Mas voltemos ao assunto anterior. Além da tensão causada por Freddy na festa das irmãs Morkans, Molly Ivors é também responsável por um confronto com Gabriel a quem ela chama de “West Briton” e que, como conseqüência, favorece ao início do afastamento entre Gretta e Gabriel. Observando a insensibilidade do marido, entrega-o a Sra. Malins [Marie Kean].

Organizou-se nova dança. Gabriel encontrou-se ao lado de Molly Ivors, jovem loquaz e desembaraçada, de rosto sardento e grandes olhos castanhos. Seu vestido não era decotado e o largo broche espetado no colo continha o emblema e a divisa irlandesa.
[...]
– Oh, meu ingênuo amigo! Descobri que você escreve para o DaiIy Express. Não se envergonha disso?
– Por que haveria de me envergonhar? – perguntou Gabriel, piscando os olhos e tentando sorrir.
– Bem. Estou envergonhada de você – disse ela com franqueza. – Pensar que escreve para um jornal como esse. Não sabia que era britânico.
[...]
Viu a esposa aproximando-se por entre os pares que dançavam uma valsa.
[...]
– Esteve dançando?
– Claro. Não me viu? Que discussão foi aquela com Molly?
– Nada. Por quê? Ela disse alguma coisa?
– Por alto. Estou tentando conseguir que o senhor D'Arcy cante. Ele está muito convencido, acho.
– Não foi discussão – disse Gabriel irritado. – Apenas queria que eu fosse a uma viagem pelo oeste da Irlanda e disse que não iria.
Gretta deu um pequeno salto para trás e bateu as mãos entusiasmada:
– Vamos, Gabriel! Adoraria rever Galway.
– Poderá ir, se quiser – respondeu Gabriel friamente.
Ela fitou-o por um momento e, voltando-se para a mãe de Freddy, disse:
– Eis um marido gentil, senhora Malins. (p. 153-154)

Outro momento de indignação marcante fica a cargo da tia Kate, que não se conforma com a atitude do padre ao substituir tia Julia no coral da igreja e expressa sua indignação em alto e bom tom. Cabe a Mary Jane apaziguar os momentos de irritabilidade e tensão. Usando como argumento que o Sr. Browne é de outra denominação religiosa e não deveria ouvir a tia Kate falar mal da igreja católica, Mary Jane consegue acalmar tia Kate que fica constrangida por ter se exaltado. Reconhecendo as qualidades apaziguadoras de Mary Jane, a suavidade e delicadeza de sua maneira de ser, Huston parece ter feito uma boa escolha ao transferir uma fala contundente, que no texto é dada a Mary Jane, para a Sra. Malins, alterando assim o texto Joyce na tela. Ao conversar sobre a provável ida de Freddy para passar algum tempo no mosteiro de Mount Melleray, sobre a devoção e dedicação dos monges, no conto temos o seguinte trecho:  
– A senhora quer dizer – perguntou Browne, incrédulo – que um sujeito pode ir lá [no mosteiro], aboletar-se como se estivesse num hotel, viver à gorda e depois sair sem pagar nada?
– Oh, a maioria das pessoas faz uma doação ao mosteiro, quando vem embora – disse Mary Jane.
– Gostaria que nossa Igreja tivesse uma instituição assim – disse Browne ingenuamente.
Ficou admirado ao saber que os monges nunca falavam, levantavam-se às duas da madrugada e dormiam em seus próprios caixões.
– Mas por que isso? – perguntou.
– É o regulamento da Ordem – explicou tia Kate.
– Sim, mas por quê? – insistiu Browne.
Tia Kate repetiu que era uma regra, nada mais. Browne, porém, parecia não compreender. Freddy Malins explicou-lhe então, o melhor que pode, que os monges procuravam remir os pecados cometidos por todos os seres humanos. A explicação não foi muito convincente, pois Browne sorriu e disse:
– Aprecio muito a intenção, mas uma confortável cama de molas não teria a mesma eficiência?
O esquife – disse Mary Jane – é para lembrar-lhes do fim inevitável.
Como o assunto tornava-se lúgubre, foi enterrado com um silêncio, durante o qual se pode ouvir a senhora Malins dizer para o vizinho:
– São homens muito bons, os monges, muito piedosos. (p. 163-164, minha ênfase)

Esta frase em negrito, transformada em última fala sobre o assunto, é pronunciada, no filme, pela Sra. Malins, que o faz com a devida austeridade e ênfase de seu caráter. A câmera faz uma tomada em ângulo normal, captando a hostilidade da Sra. Malins que, com sua tensa expressão facial e duras palavras, põe um ponto final sobre o assunto. Entre momentos de tensão, mediações e conversas corriqueiras prossegue a primeira parte do conto até seu final, quando os convidados começam a partir. No entanto, é ainda durante esta primeira parte do conto que Huston usa transformação, definição e interpolação como recursos em sua adaptação: a voz da tia Julia ao cantar “Pronta para as bodas” é forte e firme no conto, no filme é fraca e instável, enfatizando a fragilidade da personagem, prenunciando assim um dos devaneios de Gabriel no final do conto; no conto, a noite do jantar não é definida, sabemos apenas que a data faz parte das festas de comemoração pela passagem de ano, no filme o Sr. Browne ao chegar na casa das irmãs Morkan, com dois ramalhetes de flores, menciona que é dia 06 de janeiro de 1904, definindo assim o dia; no filme temos um personagem, o Sr. Grace, que não aparece no texto. O Sr. Grace, com sua leitura/declamação do poema “Broken Vows” [“Laços rompidos”], traduzido do irlandês por Lady Gregory, é uma das interpolações mais significativas no filme. A leitura/declamação do poema, incluído abaixo, aprofunda a nostalgia de Gretta e surpreende as outras personagens, pelo seu tom trágico.

It is late last night the dog was speaking of you;
the snipe was speaking of you in her deep marsh.
It is you are the lonely bird through the woods;
and that you may be without a mate until you find me.

You promised me, and you said a lie to me,
that you would be before me where the sheep are flocked;
I gave a whistle and three hundred cries to you,
and I found nothing there but a bleating lamb.

You promised me a thing that was hard for you,
a ship of gold under a silver mast;
twelve towns with a market in all of them,
and a fine white court by the side of the sea.

You promised me a thing that is not possible,
that you would give me gloves of the skin of a fish;
that you would give me shoes of the skin of a bird,
and a suit of the dearest silk in Ireland.

My mother said to me not to be talking with you to-day,
or tomorrow, or on the Sunday;
it was a bad time she took for telling me that;
it was shutting the door after the house was robbed.

You have taken the east from me;
you have taken the west from me;
you have taken what is before me and what is behind me;
you have taken the moon,
you have taken the sun from me;
and my fear is great
that you have taken God from me!

Segue-se à leitura/declamação uma suspensão da realidade presente expressa pelo pesado silêncio dos ouvintes. É nessa primeira parte que Huston vai construindo paulatinamente a entrega de Gretta à nostalgia. Ele a mostra com vontade de retornar a terra onde nasceu; com o olhar perdido ao ouvir o Sr. Grace recitar o poema; novamente entregue a divagações quando a tia Kate fala sobre seu fascínio por um cantor de sua juventude e “viaja ao passado” ao ouvir a canção do Sr. D’Arcy.
Gabriel, no final do jantar, ao voltar para o hall de entrada da casa das tias depois de ajudar alguns convidados a pegar a charrete, é atraído pela imagem de Gretta parada no patamar da escada, entregue à canção do Sr. D’Arcy: “The Lass of Aughrim” [“A garota de Aughrim”]. No conto, Gretta está contra um fundo escuro, perdida em lembranças. No filme, Gretta, de véu branco, está contra um vitral colorido de igreja, cujas bordas circundam sua figura, fazendo-a parecer parte dele e conferindo à imagem uma aura santificada (ver Figura 3).
Figura 3: Gretta ao ouvir a canção “The Lass of Aughrim”.

Gabriel, no conto, fica totalmente tomado pela imagem que vê. Seu amor/desejo por Gretta assume contornos definidos e ele deseja intensamente ficar a sós com ela para tê-la em seus braços.

Um fluxo de alegria ainda mais terna brotou-lhe do coração e expandiu-se numa torrente cálida em suas artérias. Como o brilho suave das estrelas, imagens de sua vida em comum, que ninguém conhecia nem jamais viria a conhecer, iluminaram-lhe a memória. Gostaria de recordar-lhe esses momentos, fazê-la esquecer os anos insípidos da vida conjugal e lembrar apenas dos instantes de êxtase. Sentia que nem sua alma nem a dela tinham sido aniquiladas pelos anos. Os filhos, os livros, os trabalhos domésticos não haviam extinto a delicada chama de suas almas. Numa carta que escrevera, ele dissera: "Por que razão as palavras me parecem tão tristes e frias? Será porque não existe palavra bastante suave para ser teu nome?"
Como longínqua música, essas frases que escrevera há muitos anos ressurgiam do passado. Queria estar a sós com ela. Quando todos tivessem ido embora, quando se encontrassem no quarto do hotel, então ficariam juntos e sós. Ele a chamaria docemente:
– Gretta!
Talvez não ouvisse na primeira vez: estaria se despindo. Mas alguma coisa em sua voz a feriria. Voltar-se-ia e olharia para ele... (p. 174)

No filme, o desempenho do ator, sugere mais indagação do que desejo. Desde o momento que Gretta desce as escadas da casa das tias e Gabriel a observa, é difícil interpretar o olhar de Gabriel como desejo. Seu olhar volta-se para a esposa e fixa-se nela, atentamente, até o término da canção quando Gretta acorda de seu devaneio e desce os últimos degraus da escada. A expressão do ator não é de desejo como descrito por Joyce, mas a de um homem intrigado ao ver Gretta “ausente”, distanciada do mundo que a cerca.

Interlúdio
Após a despedida, Gabriel e Gretta tomam a charrete que os levará ao Hotel Gresham. Inúteis são as tentativas de Gabriel para aproximar-se de Gretta. No texto eles não estão sós, o Sr. D’Arcy está com eles. No filme, eles estão sós, mas nem a privacidade que têm nem a comicidade da história sobre o cavalo de seu tio-avô narrada por Gabriel afasta Gretta do estado de espírito em que se encontra. Ela está entregue a sua nostalgia e não consegue sair de si mesma. Ao chegarem ao hotel, vão diretamente ao quarto. Gabriel dispensa a luz oferecida pelo dono do estabelecimento, dizendo que a luz da rua é suficiente para iluminar o quarto. O desejo de estar a sós com Gretta continua a pulsar em Gabriel. No conto, este desejo é manifesto em casa palavra de Joyce.

Segundo momento
Ironicamente, apesar do crescente desejo de Gabriel, dois personagens não poderiam estar mais distantes que Gretta e o marido ao entrarem no quarto. Ele a observa atentamente: ela continua distante e aparentemente inalcançável. Ao iniciar uma conversa, comentando que Freddy lhe devolvera o dinheiro que no passado lhe emprestara,
Então, [Gretta] ergueu-se subitamente na ponta dos pés apoiando de leve as mãos, beijou-o.
– Você é muito generoso, Gabriel.
Trêmulo de prazer por aquele beijo e pela frase inesperada, Gabriel começou a acariciar-lhe os cabelos, quase sem tocá-los com os dedos. Eram macios e brilhantes. Seu coração transbordava de felicidade. Ela viera espontaneamente, no primeiro instante em que ele a desejava. Talvez estivessem pensando a mesma as mesmas coisas. Talvez houvesse pressentido o impetuoso desejo que o possuía e por isso se abandonara. Agora que se rendera docilmente, admirava-se de ter sido tão tímido.
Segurou sua cabeça entre as mãos e depois deslizando um dos braços em volta de seu corpo, puxou-a para junto de si, dizendo suavemente:
– Gretta, querida, em que está pensando?
Ela não respondeu nem se abandonou por completo em seus braços. Tornou a perguntar brandamente:
– Conte-me Gretta. Creio que sei do que se trata. Não sei?
Ela não respondeu imediatamente. Então, numa torrente de lágrimas, murmurou:
– Estou pensando naquela canção. The Lass of Aughrim.
Libertou-se dele e correu para a cama.

Então Gretta inicia sua história sobre o amado de sua adolescência. No filme, Gretta já tinha trocado de roupa e, apoiada na grade aos pés da cama (ver Figura 4), inicia a trágica história de seu relacionamento com Michael Furey, na adolescência, e de sua morte prematura aos 17 anos. O rapaz morrera por ela, segundo Gretta. Depois de terminar sua história, Gretta cala-se sufocada por soluços e adormece.

Figura 4: Gretta conta a trágica história de Michael Furey.

Ao ouvir a história de Gretta, o desejo de Gabriel, no texto, transforma-se aos poucos em indiferença. Ele a observa enquanto dorme “como se nunca houvessem vivido juntos” (p. 180) e pensa que o rosto que vê agora na cama já não é bonito, não é o rosto pelo qual Michael Furey morrera (p. 180-181). É importante repetir, antes de passarmos aos devaneios de Gabriel no final do conto, que o ator Donal McCann, ao representar o personagem Gabriel, não consegue conferir-lhe a expressão do desejo crescente por Gretta tão magistralmente descrito por Joyce nas linhas do conto.
Depois da revelação sobre o amor e a morte de Michael Furey, ao observar Gretta já adormecida, Gabriel, nas duas últimas páginas do conto, entrega-se a devaneios sobre a revelação da esposa, sobre a sua pobre figura de marido, sobre a iminente morte da tia Julia, até que o ar gélido o leva a cama. No texto, já deitado, com os olhos marejados, imagina ver a imagem do amante adolescente encharcado sob uma árvore, ansiando por sua amada, e lentamente sua alma é levada à região habitada pelos mortos. O mundo real parece desagregar-se. Mas Gabriel volta-se para a janela quando leve batidas dos flocos de neve o chamam novamente para a realidade. No filme, Gabriel entrega-se aos mesmos devaneios, desta vez sabemos deles pela voz over e assistimos a algumas imagens recriadas por Huston, como a cena do velório da tia Julia (ver Figura 5).
Figura 5: Cena do velório de tia Julia (devaneio de Gabriel).

Gabriel permanece na janela e observa os flocos de neve que caem por toda a Irlanda, sobre todos os vivos e os mortos. No último momento, a neve que cai invade seu pensamento, tanto no conto quanto no filme. O branco da neve paira como uma premonição de morte.


Referências:
HUSTON, John. Os vivos e os mortos. DVD Cult Classe, 2009.
JOYCE, James. Os mortos. In: Os dublinenses. Trad. Hamilton Trevisan. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1964, p. 143-182.
HUTCHEON, L. A Theory of Adaptation. New York: Routledge, 2006.
MCFARLANE, Brian. Novel do Film: An Introduction to the Theory of Adaptation. New York: Oxford, 1996.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.



[1] Versão em inglês: “As openly acknowledged and extended reworkings of particular other texts, adaptations are often compared to translations. Just as there is no such thing as a literal translation, there can be no literal adaptation. […] Transposition to another medium, or even moving within the same one, always mean change, or, in the language of the new media, “reformatting”.

[2] Todas as referências ao conto “Os mortos” serão da edição registrada nas Referências e incluiremos apenas o número da página depois da citação.