Rita de Cássia Alves de Souza[1]
rita@ufpr.br[2]
RESUMO: Este trabalho analisa a obra A pequena ilha, de Andrea Levy, publicada em 2008, a fim de destacar as semelhanças e diferenças entre as duas principais personagens femininas salientaando a construção da identidade e da alteridade de cada uma delas, especialmente como vivenciadoras das transformações morais e sociais que estavam se concretizando no período pós-guerra. O foco narrativo, em primeira pessoa, revela os sentimentos das protagonistas em relação às difíceis decisões contra as quais se deparavam. Para embasamento teórico foram utilizados os conceitos teóricos da obra Identidade cultural na pós-modernidade de Stuart Hall, entre outras. O espaço e o tempo dos acontecimentos foram contextualizados nos anos 1940, na Jamaica colonial e na Inglaterra, revelando conflitos de resistência entre colonizador e colonizado.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade. Romance pós-colonial. Alteridade.
1. INTRODUÇÃO
Quando tentamos classificar a produção literária da escritora britânica Andrea Levy enfrentamos a dificuldade que as limitações dos rótulos nos impõe, especialmente na atribuição de uma categoria específica para sua escrita, entre as inúmeras possibilidades possíveis – literatura de resistência, literatura autobiográfica, literatura feminina, literatura inglesa, literatura em língua inglesa, literatura feminista, literatura pós-colonial. É exatamente essa mescla que torna a obra de Levy tão interessante ao leitor, e é o que encontramos em seu romance A pequena Ilha. Estudado como uma narrativa de resistência dentro da literatura pós-colonial utiliza-se de elementos autobiográficos e fatos históricos em sua composição. A ação do romance se passa em Londres, no período pós-guerra ainda em fase de reconstrução, e mostra a chegada dos primeiros imigrantes jamaicanos à Inglaterra, no ano de 1948.
Narrada a quatro vozes, A pequena ilha, tem quatro personagens principais – um casal negro e um casal branco – cujas narrativas se revezam no texto; contudo as vozes das personagens femininas se sobressaem às masculinas. O objetivo do nosso trabalho é analisar a busca identitária das personagens femininas – Hortense Joseph e Queenie Bligh –, apontando semelhanças e diferenças em sua trajetória.
Andrea Levy nasceu em Londres, filha de pais jamaicanos, e apesar de sua obra ser ficcional, ela usa a mescla de dados históricos reais, para contar um pouco da história de seus antepassados nas narrativas que escreve. Em entrevistas recentes (THE GUARDIAN, 2010) a autora explana sobre a re-apropriação do passado de seus antepassados jamaicanos, por meio de pesquisas em documentos históricos e conversas com seus familiares, acumulando experiências que possibilitam romper as tênues fronteiras entre ficção e autobiografia em suas narrativas.
A autora costuma embasar suas personagens em características de pessoas que conhece. Assim há muito da mãe da autora na composição da personagem Hortense de A pequena ilha. A mãe de Levy, assim como Hortense, viera para Londres ao encontro do marido em 1948. Ela que havia sido professora na Jamaica não foi aceita como professora em Londres. Apesar de ser parda, foi considerada negra e sofreu o preconceito racial da Inglaterra branca, porém resignou-se e voltou a estudar - motivo pelo qual Levy se orgulhava dela, decidindo usar esses dados na composição da história da personagem (THE GUARDIAN, 2010). Para caracterizar a outra protagonista do romance, Queenie Bligh, Levy fez uso de dados da história de sua sogra – britânica e branca, que cresceu na década de 1920, numa fazenda em Eeast Midlands.
A autora afirma que, procurou dar voz igual aos quatro personagens, para que pudessem contar a história sobre o prisma do colonizador inglês branco e, do colonizado jamaicano negro, e que para ela Hortense não era mais importante do que Queenie, o que importava realmente era o relacionamento entre elas. Levy aponta ainda que a trajetória de Queenie e de Hortense se parecia em muitos detalhes, porém nada foi intencional. Todavia, deixando de lado a intencionalidade da autora, a comparação da trajetória das personagens mostra a inversão do papel do lado dominante ao final da narrativa, com a personagem branca se postando de joelhos aos pés da personagem negra, numa analogia do colonizador aos pés do colonizado.
2. A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NA INFÂNCIA E NA JUVENTUDE DE HORTENSE E QUEENIE
Os paralelos entre as trajetórias das personagens Hortense e Queenie são visíveis desde a infância. Hortense nasceu no Distrito de Savannah-la-Mar, na Jamaica colonial. Ela era filha natural de um servidor do governo britânico e de Alberta, uma moça do campo, negra, analfabeta e pobre. O pai, Lovell Roberts, era um sujeito de pele cor de mel, descrito como um homem famoso, conhecido e respeitado na Jamaica. Apesar de Hortense nunca tê-lo conhecido pessoalmente, ela sabia bastante sobre ele pelo que as pessoas contavam, e também pelas notícias que ela lia nos jornaisl. Hortense pensava nele como um homem fino e inteligente. Dele a menina herdou a cor de mel, o que dava a ela a ilusão de ser “branca”; não se identificava com a mãe e não se recordava da aparência dela, ou qualquer semelhança física que a remetesse a figura materna. Hortense foi criada pelos primos do pai, e cresceu na companhia do primo Michael Roberts. Quando crianças, os dois brincavam juntos, todavia, como menino, ele tinha o tempo todo livre, ao passo que a ela, como menina, eram atribuídos afazeres domésticos. Inseridos em uma sociedade patriarcal colonial, os papeis sexuais ficavam bem definidos, e Hortense como menina não vivenciava a liberdade que seu primo desfrutava.
Da mesma forma, a personagem Queenie, mesmo sendo uma branca, nascida em Londres – a capital do Império Britânico – sofria na infância, as limitações da condição feminina. Batizada como Victoria Buxton, foi sempre chamada de Queenie. Como os britânicos médios da época, seus pais davam pouco valor à educação, e estavam mais preocupados com o trabalho. A mãe de Queenie era filha de agricultores, e o pai açougueiro, era filho e neto de açougueiros. Queenie era a primogênita, mas sabia que o pai queria filhos homens. Por outro lado a mãe de Queenie sempre quisera uma filha, não por que gostava de meninas, mas por que precisava ter alguém com quem dividir as tarefas domésticas, num modelo de continuidade de sua própria vida. Aos doze anos de idade Queenie começou a assumir as tarefas estafantes da casa, antes realizadas pelas empregadas; dividia-se entre as tarefas domésticas e os cuidados com os três irmãos menores.
Nessa etapa da narrativa as semelhanças entre as protagonistas são visíveis pelos papéis sexuais que as duas meninas representavam, ao se adequar ao comportamento que a sociedade patriarcal esperava delas. Porém, tanto Hortense, quanto Queenie sentiam-se superiores as outras crianças, com quem conviviam. Hortense não se identificava com as crianças negras e pobres da escola pública em que estudava na Jamaica. Da mesma forma, Queenie, embora tivesse que trabalhar duramente em casa, também não detinha o conceito de igualdade para com as crianças pobres e sujas, filhas dos mineiros com quem convivia em sua escola em Londres. Ambas detinham em seu interior um sentimento de incompletude, que as direcionava para a busca de um padrão de vida mais elevado. Essa insatisfação marca o início da construção da identidade individual para elas, em detrimento da identidade coletiva a que estavam direcionadas.
Manuel Castells aponta para o fato de que toda e qualquer identidade é construída, tendo em base que os papéis que os indivíduos representam são definidos por normas estabelecidas pelas instituições e organizações da sociedade:
O processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual (is) prevalece(m), sobre outras fontes de significados. Para um determinado individuo, pode haver identidades múltiplas. No entanto essa pluralidade é fonte de tensão e contradição, tanto na auto-representação, quanto na ação social. (CASTELLS, 1999, p.22)
A construção da identidade individual, de Hortense e Queenie vai se consolidando em direção oposta a sociedade colonial. Limitadas pela condição feminina da época, as duas manifestavam várias atitudes de enfrentamento e discordância dos valores e papéis a que estavam previamente designadas. Nesse ponto as semelhanças acabam e começam as diferenças. Hortense colocava o estudo no mais alto patamar, se condicionando a ser a melhor aluna da escola. Por outro lado, Queenie, aprendera apenas o básico e se distraia com as tarefas que lhe eram atribuídas pela professora de sua escola. Ainda uma jovenzinha Hortense formou-se e começou a dar aulas em escola particular, enquanto Queenie foi forçada pelos pais a abandonar a escola com apenas quatorze anos, para assumir em período integral as árduas tarefas da fazenda da família.
Nesse contexto ambas estavam definindo os contornos de sua identidade individual. Hortense tinha como modelo feminino as mulheres negras com quem convivia: sua avó Miss Jewel, criada da casa, e sua tia Martha – modelo de resignação e submissão ao marido –, além de uma tênue lembrança da mãe negra e pobre. Rejeitando os modelos que lhe eram oferecidos começou a introjetar dentro de si um novo paradigma do sujeito que desejava a ser, rejeitando a negritude, a falta de cultura e a pobreza. Para Queenie o que se apresentava como modelo feminino era a figura de sua mãe – escravizada nas tarefas domésticas – e as moças que trabalhavam em sua fazenda. Da mesma forma que Hortense, Queenie, rejeitava seus modelos femininos e imaginava para si uma vida diferente, desejando sair da periferia rural e morar com as pessoas refinadas de Londres. Queenie abominava a idéia de casar-se e continuar morando na fazenda vendo sua vida tornar-se uma continuação da vida da mãe dela, perdida entre as tarefas estafantes e a sujeira dos animais, por isso não via possibilidade de casar-se com os possíveis candidatos com quem convivia.
Tanto Queenie, quanto Hortense tinham uma imagem de si mesmas divergente do olhar dos outros. Charles Taylor, citado por Eurídice Figueiredo (2010, p.189), fala sobre o a importância do reconhecimento dos outros na formação de nossa identidade individual:
[Ela] designa algo que se assemelha à percepção que as pessoas têm de si mesmas e das características fundamentais como seres humanos. A tese é que nossa identidade é parcialmente formada pelo reconhecimento ou pela ausência dele, ou ainda pela má percepção que os outros têm dela. (...). O não-reconhecimento ou o reconhecimento inadequado pode prejudicar e construir uma forma de opressão, aprisionado certas pessoas, em um modo de ser falso, deformado ou reduzido. (TAYLOR, 1994, p.44)
A citação acima ilustra bem o dilema vivido por Hortense, pois mesmo se vendo como branca, era vista como negra pelos outros independentemente da cor parda de sua pele. De forma semelhante Queenie não se via como fazendeira e começou inconscientemente a desenvolver atitudes de enfrentamento contra aquele paradigma, começando pela recusa a comer carne, ponto de honra para a família de açougueiros. Ao refutar a adequar-se aos modelos a que estava previamente destinada, Hortense era repreendida por suas atitudes pela prima Martha: “você agora acha que é branca... uma dama sem nada para fazer?” (LEVY, 2008, p.54). Com essa frase a prima transmitia um recado claro a Hortense, de que ela era negra e pobre.
De forma semelhante Queenie tinha suas atitudes ironizadas pelo patriarca de sua família: “A nossa carne não é boa o bastante para a Pequena Rainha – rugia meu pai em quase todas as refeições. Chegava até a socar a mesa com o punho, fazendo seu jantar sair voando e escorrer pela parede” (LEVY, 2008, p.243).
O confronto entre Queenie e o pai revela sua luta contra o conformismo que a conduziria inevitavelmente a uma vida que repudiava. Como solução contra sua rebeldia, a família a enviou para viver com sua tia Doroti em Londres. O que para eles era uma punição – afastá-la da família – se revelou para Queenie como uma libertação.
Em seu mundo Hortense também lutava contra uma vida de submissão, ela não enfrentava diretamente o patriarca, o Sr. Philip um homem rígido e religioso, que gostava de discursar a mesa, demonstrando para a sua família que ali ele era a autoridade e todos deveriam seguir suas ordens. Todavia Hortense se sentia feliz quando o primo Michael enfrentava o pai, manifestando uma opinião contrária a dele. Talvez essa rebeldia de Michael ao exercer uma atitude que para ela como mulher e agregada da casa seria impossível, tenha sido a causa de Hortense se apaixonar por ele. No entanto quando ela descobriu que o primo estava intimamente envolvido com uma mulher branca e casada, hortense não se mostrou condescendente para com eles, e os denunciou em praça pública. Essa atitude teve como consequência seu afastamento da família e assim como Queenie, Hortense foi enviada para longe da família. Essa etapa da narrativa potencializa e evidencia os reflexos do patriarcalismo e dos valores sociais dominantes na época.
A construção da identidade individual por Queenie e Hortense foi se consolidando inicialmente pela rejeição do paradigma a elas imposto pela sociedade e depois pelo início da construção de um novo paradigma. Essa fragmentação do indivíduo moderno, assim como o surgimento de novas identidades é o que Stuart Hall chama de “crise identitária”, vista como parte de um amplo processo de mudança. O teórico aponta ainda que o processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades, está em constante transformação:
A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...]. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. [...]. A identidade plenamente unificada completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2003, p.13)
De forma semelhante Hortense e Queenie usufruíram uma enganosa liberdade de decisões e escolhas, proporcionada pela distancia da vida familiar, pois vivendo longe da família pensavam construir o futuro sonhado. Hortense pretendia ir para a Inglaterra trabalhar como professora e mudar de vida, enquanto Queenie pretendia encontrar um bom partido que lhe proporcionasse um estilo de vida refinado, longe da vida rural de sua infância.
3. O CASAMENTO COMO OPÇÃO
Logo Hortense e Queenie perceberam a limitação de serem mulheres solteiras nos anos 1940, Hortense pretendia ir para a Inglaterra, mas não era de bom tom moças solteiras viajarem desacompanhadas, por isso optou por um casamento de conveniência. Para garantir a realização de seu sonho emprestou o dinheiro da viagem ao amigo Gilbert Joseph, com a condição de que ele se casasse com ela. Hortense não o amava, mas via nele uma semelhança física com seu primo Michael, e confiava nele.
De forma semelhante Queenie se viu obrigada a casar-se com Bernard Bligh, o primeiro namorado, e por quem ela não sentia atração alguma; com a morte da tia, sua opção era retornar a fazenda dos pais e as tarefas domésticas, ou casar-se com ele. Queenie não havia se formado e não tinha uma profissão; precisava, portanto que alguém a provesse financeiramente. Por sua vez Hortense era bem instruída, mas necessitava de uma figura masculina para protegê-la.
Outra semelhança encontrada na trajetória das duas personagens era o não acesso ao mundo do trabalho e consequentemente a independência financeira. Ao procurar por trabalho em Londres, Hortense apesar de ser professora gabaritada na Jamaica, foi impedida de exercer sua profissão, uma vez que a cor de sua pele a tornava inapta a ensinar crianças brancas. Da mesma forma ao procurar emprego remunerado, Queenie foi recusada e mandada para casa, pois os empregos no pós-guerra estavam direcionados ao público masculino. Assim como foi negado a Hortense o direito de exercer sua profissão porque era negra, também a Queenie foi negada ocupação porque era mulher. Ambas ficavam a margem de um possível acesso a um nível social mais elevado e consequentemente continuavam dependendo financeiramente dos maridos.
A articulação das diferenças vai se evidenciando na narrativa pela evolução dos sentimentos das personagens; mesmo que ambas tenham casado com homens que não amavam, com o tempo Hortense foi desenvolvendo amor pelo marido; ela se sentia fisicamente atraída por ele. No entanto, Queenie foi se distanciando cada vez mais do companheiro, e quando ele foi para a guerra e ficou anos sem dar notícias, ela acabou se envolvendo intimamente com um soldado negro e engravidando dele.
Com a rejeição social e racial que vivenciara na Inglaterra, Hortense acabou por abandonar a falsa identidade branca, que havia construído na Jamaica. Ao aceitar seu marido negro como um igual, ela começava a definir a sua verdadeira identidade. Queenie por sua vez, experimentava uma atração inclusive sexual por negros; era não era racista e enfrentava um difícil dilema – se enquadrar na sociedade branca racista em que estava inserida, ou viver a vida da forma como achava correta – convivendo com os negros numa linha de igualdade.
O fato das duas mulheres terem se apaixonado pelo mesmo homem é mais do que uma semelhança em sua trajetória, nos parece mais uma ironia. Hortense foi apaixonada por Michael Roberts na Jamaica, chegando a desejar ir para a Inglaterra para reencontrar o amado, enquanto Queenie apaixonou-se por Michael Roberts na Inglaterra, chegando a gerar um filho dele num ambiente racista, arriscando-se a sofrer o julgamento público que condenaria a ela e ao filho.
Queenie, assim como Hortense foi se modificando no decorrer da narrativa, à medida que ia se humanizando com o sofrimento alheio. O autoconhecimento e amadurecimento espiritual das personagens são percebidos por meio das provas que enfrentaram; nesse percurso se evidenciavam as diferenças e semelhanças entre elas.
Stuart Hall aponta que “A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado sobre sua unidade” (HALL, 2003, p. 38). Para o teórico a identidade permanece sempre incompleta e está sempre sendo formada.
Também percebemos esse processo na busca identitária de Queenie e Hortense, pois tanto uma quanto a outra sentiam dentro de si identidades contraditórias que as colocavam em confronto com os valores da sociedade colonial em que vivam. Hortense vivia em conflito por construir uma imagem falsa para si mesma, se imaginando como branca e rejeitando seus iguais, mas a maneira como os outros nos vêem também contribui na construção de nossa identidade individual, e o fato dos outros a verem como negra levou-a inevitavelmente, a uma reflexão sobre si mesma. Eurídice Figueiredo (2010, p.191) afirma que a identidade é negociada pelo indivíduo durante toda a vida; “Entende-se desse modo, porque a questão identitária só interessa e só é reivindicada por aqueles que não são reconhecidos por seus interlocutores”.
Ao sofrer com a barreira social e racial inglesa, Hortense tentou ver-se como negra por seus próprios olhos, contudo deparou-se com sua condição híbrida; mais uma vez sua identidade individual estava se deslocando; como filha de um homem pardo, tendo brancos e negros como antepassados, e sendo portadora de dupla nacionalidade – britânica e jamaicana –, ela se via impedida de assumir apenas a identidade negra, pois era na verdade um sujeito híbrido. Hortense vivenciava a angustia de estar no entre-lugar entre duas culturas tão diferentes. Hall citado por Stela Maris Coser (2010, p.172) aponta sobre o hibridismo que “não há um sujeito híbrido, formado e assumido como tal, mas ao angustiante processo de tradução cultural [...] As comunidades migrantes trazem a marca da diáspora”.
Hortense vivenciava o que Bhabha vê como uma terceira margem, ou um caminho do meio, nem bem aqui, nem bem ali entre duas culturas:
O terceiro espaço é capaz de abrir o caminho a conceituação de uma cultura internacional, baseada não no exotismo ou na diversidade de culturas, mas na inscrição do hibridismo da cultura. Para esse fim deveríamos lembrar que é o inter – o fio cortante da tradução e da negociação, o entre-lugar – que carrega o fardo da significação da cultura. (BHABHA, 1998, p.69)
Esse deslocamento das fronteiras, até mesmo territoriais, que abrigavam Hortense como um ser diaspórico, atribuíam a ela o caráter da mestiçagem. Sobre esses deslocamentos Nubia Hanciau afirma:
Se o sujeito transculturado é alguém que está in/conscientemente situado entre pelo menos dois mundos, duas culturas, duas línguas e duas definições de subjetividade, constantemente mediando entre elas, à transculturação também pode ser vista como um fenômeno da zona de contato, que não apenas conduz a formular uma série de questionamentos, mas organiza, segundo Angel Rama, esse espaço ‘ambivalente e indeterminado. (HANCIAU, 2010, p.135)
Assim como Hortense Queenie também se debatia entre os limites se sua identidade branca inglesa, pois dela era esperado que respeitasse a dicotomia centro/margem representada pelo binômio colonizador branco/negro colonizado. Sua atração pelo negro a levava para a periferia daquela sociedade colonial. Mas Queenie desejava um mundo diferente; ao alugar os quartos de sua casa aos migrantes negros enfrentou a crítica de seus vizinhos racistas. Ao se envolver intimamente com um soldado negro, Queenie exerceu sua sexualidade, deixando de lado as convenções sociais da época. Essa atitude de enfrentamento ficou ainda mais visibilizada por ela aceitar e levar adiante a gravidez, sabendo que geraria um filho híbrido. O fato de Queenie entregar a criança a Hortense para que a criasse, demonstrava a preocupação com o futuro do filho e não rejeição, até porque, caso resolvesse criar a criança numa sociedade racista, estando casada com um marido altamente preconceituoso, fatalmente condenaria a criança e por conseqüência ela mesma a uma vida de humilhações. Dessa forma Queenie se assumia como inglesa branca não racista, antevendo as transformações que viriam com as migrações dos nativos das ex-colônias para a Inglaterra no momento pós Segunda Guerra Mundial.
CONCLUSÕES
Percebemos que ao final da narrativa, ambas as protagonistas tinham encontrado e aceitado sua identidade individual. O romance se encerra, portanto, com a descoberta e aceitação do hibridismo de Hortense após uma jornada de autoconhecimento. De forma semelhante Queenie descobriu o amor pelo filho negro, contudo não estava preparada para criá-lo numa sociedade racista. O fato das duas mulheres terem permanecido casadas, mostra ao mesmo tempo uma semelhança e uma diferença em suas trajetórias, ambas escolheram os maridos por conveniência, contudo Hortense descobriu-se apaixonada pelo marido e disposta a construir uma vida ao lado dele na Londres inóspita a sujeitos diaspóricos que se apresentava a sua frente. Por outro lado Queenie revelava resistência por continuar casada com um homem que não amava, até porque ela continuava sem opções de acesso ao mundo do trabalho. As duas personagens demonstram um forte enfrentamento ao paradigma colonial estabelecido, lutando, cada uma a sua maneira, pelo direito de sonhar uma sociedade diferente.
REFERÊNCIAS
BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010.
CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999, v.2.
COSER, S. Híbrido, hibridismo e hibridização. In: FIGUEIREDO, E. (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005. p.163-187.
FIGUEIREDO, E. & NORONHA, J. Identidade nacional e identidade cultural. In: FIGUEIREDO, E. (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005, p.189-205.
THE GARDIAN BOOK CLUB. Disponível em: WWW.guardian.co.uk/books/series/bookclub>. Acesso em maio 2011.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
HANCIAU, N. Entre lugar. In: FIGUEIREDO, E. (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005, p.125-142.
LEVY, A. A pequena ilha. São Paulo: Nova Fronteira, 2008.