quarta-feira, 27 de junho de 2012

A autobiografia dos que não escrevem e os direitos humanos


No ensaio intitulado “A autobiografia dos que não escrevem”, Philippe Lejeune flexibiliza os termos de sua definição de autobiografia, ao discutir como uma nova produção “autobiográfica” os relatos de vida coletados pelo gravador e publicados em formato de livro. Concede-se, assim, o direito de transformar em escrita e divulgar ao público a palavra dada a pessoas que não têm o privilégio de escrever e publicar a narrativa da própria vida. É o caso de Rigoberta Menchú, ativista indígena guatemalteca, cujo testemunho à antropóloga venezuelana, Elizabeth Burgos-Debray publicado como Meu nome é Rigoberta Menchú e assim me nasceu a consciência  (1983), valeu-lhe o Prêmio Nobel da Paz de 1992. Narrativas pessoais como essa se tornaram um dos veículos mais potentes na luta pelos direitos humanos em todo o mundo.
Human Rights and Narrated Lives (Direitos humanos e vidas narradas) foi o tema do seminário ministrado pela Dra. Sidonie Smith, da Universidade de Michigan, no III Congresso Internacional da ABRAPUI na Universidade Federal de Santa Catarina, de seis a nove de maio. Transcrevemos abaixo, traduzida e editada, a proposta do seminário apresentada aos participantes, por julgá-la relevante para os interessados nos estudos dos gêneros autobiográficos.

Sidonie Smith (Universidade de Michigan) – Direitos humanos e vidas narradas

Com o apelo à empatia do leitor, narrativas de vida que fazem reivindicações contra agentes de um estado ou de facções políticas tornaram-se um poderoso instrumento para o avanço da luta mundial pelos direitos humanos. Servem a múltiplos propósitos: relatar injúrias, confrontar as conseqüências de traumas sofridos, identificar culpados, exigir desculpas, homenagear as vítimas mortas ou silenciadas, convocar à ação e levantar fundos para causas ativistas e para ONGs.
Nas três últimas décadas vários tipos de narrativas circulam em nível global. Os gêneros testemunhais incluem narrativas de genocídios tais como as do holocausto e dos assassinatos em Ruanda; histórias de exploração e traição em guerras, como o exemplo mais recente de crianças forçadas a lutar como soldados; histórias individuais e coletivas de prisão política e tortura; histórias orais de sobreviventes idosas do sistema organizado de escravidão sexual durante a Segunda Guerra Mundial; documentários sobre sobreviventes de estupros em locais como a Bosnia-Herzegovina; relatos feitos por mulheres de “assassinatos em nome da honra”; narrativas que recordam dissidentes políticos “desaparecidos” na Argentina; narrativas de assassinatos, tortura e desaparecimento na África do Sul pós-apartheid; histórias de indígenas australianos “roubados” de suas famílias e comunidades e colocados em orfanatos ou lares adotivos.
Ativistas no campo dos direitos humanos ou de comissões em julgamentos oficiais buscam tais histórias e organizam arquivos de violações de direitos para construir a documentação necessária para trazer um caso perante fóruns oficiais e ao conhecimento público. Por vezes, uma narrativa em particular, publicada e divulgada como história de um(a) sobrevivente, atinge ampla repercussão internacional e transforma a testemunha em celebridade na arena dos direitos humanos.
Este seminário aborda narrativas de vida e campanhas pelos direitos humanos como domínios multidimensionais que se intersectam em pontos críticos, em uma relação ética que é, a um tempo, importante como reivindicação de justiça social e problemática na consecução deste objetivo.
Examinaremos como narrativas autobiográficas são produzidas, recebidas e circuladas no campo de direitos humanos, a fim de compreender melhor como e em que condições essas narrativas podem afetar a reorganização política atual e ser afetadas por  ela.
Relevantes para o nosso seminário são as questões do tráfico contemporâneo de narrativas de sofrimento, o valor da “autenticidade” e o escândalo das imposturas, além de práticas alternativas de narrativas de vida.

Tradução de Mail Marques de Azevedo

quarta-feira, 6 de junho de 2012

DA PINTURA AO TEXTO TEATRAL: DISCURSOS INTERMIDIÁTICOS EM
QUANDO DESPERTARMOS DE ENTRE OS MORTOS, DE HENRIK IBSEN


Profa. Dra. Anna Stegh Camati


Além de ser considerado o pai do drama moderno e ter renovado as artes cênicas, Henrik Ibsen (1828-1906) foi apontado, por Malcolm Bradbury (1989, p. 61), como sendo “o dramaturgo que, mais do que qualquer outro escritor, dominou o início do movimento modernista”. Na modernidade, a representação de diferentes formas de subjetivação torna-se uma das principais fronteiras expressivas e, nesse sentido, Ibsen promove uma reflexão sobre a nova subjetividade que aflora no limiar do século XX. Com o intuito de revelar, no espaço da escritura dramática, a paisagem interna das personagens que se deparam com anseios e desejos que, muitas vezes, elas mesmas não compreendem, Ibsen se envolveu com todos os movimentos artísticos de seu tempo, desde o simbolismo até o expressionismo e surrealismo, cujos representantes investigavam as profundezas da psique a partir de ideias difundidas por Kierkegaard, Nietzsche e Freud.
Em sua fase simbolista (1890-1899), Ibsen explora a natureza elusiva e contraditória da subjetividade humana por meio de referências psicoanalíticas, pictóricas e míticas, destacando-se na representação de aspectos difíceis de serem traduzidos em palavras. Nesse sentido, a linguagem visual configura-se em importante subtexto para a revelação das subjetividades das personagens.
Em sua última peça, Quando despertarmos de entre os mortos (1899), Ibsen rompe totalmente com as convenções dramáticas da peça-bem-construída ou peça de intriga, criando um drama inspirado em mitos gregos e imagens simbólicas. A ação é substituída pela revelação das subjetividades das personagens que “não são pessoas reais do mundo cotidiano”, mas podem ser consideradas arquétipos ou “símbolos da visão poética do dramaturgo” (MENEZES, 2006, p.63), seres que tentam entender e nomear os afetos que os movem. A peça também pode ser lida como o retrato do artista em sua desenfreada busca por novas linguagens para expressar o novo Zeitgeist em efervescência na virada do século XX.
Este ensaio propõe-se a discutir as descrições ecfrásticas de duas esculturas, enunciadas por Arnold Rubek, que aludem ao seu afastamento da fase juvenil romântica para se tornar um artista moderno, e investigar a produção de sentido gerada pela manipulação de referências pictóricas simbolistas que remetem ao quadro de Edvard Munch, “Esfinge – Três estágios da mulher” (1894), principalmente em relação às três personagens femininas Irene, Maja e a Diaconisa e/ou às três fases da vida de Irene, a musa inspiradora do escultor.

1 Considerações teóricas sobre as relações entre a literatura e a pintura

A comparação entre as artes se insere em uma longa tradição que, segundo Platão, remontaria a Simônides de Ceos que empreendeu reflexões sobre a maneira como as artes se relacionam ao sentido da visão ou da audição. Esses postulados teóricos foram retomados por Horácio que, no século I, em sua Epístola aos Pisãos, discute a importância das impressões visuais que seriam mais marcantes do que as auditivas. O mote de Horácio, “um poema é como uma pintura”, retomado pelos teóricos do Renascimento, está na origem da doutrina do Ut pictura poesis. Na frase de Horácio, Ut pictura poesis erit, “um poema existe tal como um quadro”, a pintura constitui o referencial da comparação, sugerindo, assim a superioridade da imagem sobre a linguagem.  Os teóricos do Renascimento inverteram o sentido da comparação: a poesia passou a ser o referencial e a pintura o termo comparado, submetendo a pintura às artes da linguagem. A enunciação de Horácio passou a ser entendida como Ut poesis pictura, “a pintura é como um poema”, e essa inversão de sentido prevaleceu e disseminou-se através dos séculos até ser questionada e reconfigurada, no século XVIII, por Gotthold Ephraim Lessing (LICHTENSTEIN, 2004, p. 9-11).
            A mudança de entendimento da máxima de Horácio, por outro lado, foi um dos meios que modificou o estatuto da pintura, conferindo-lhe, a mesma finalidade que Aristóteles atribuía à poesia dramática, ou seja, de contar uma história. A partir de então, a pintura e a poesia, apesar das rivalidades, foram chamadas de artes irmãs relacionadas em múltiplos aspectos: “Os pintores tomariam seus temas da literatura, transformando a narrativa em quadros, e os escritores celebrariam os pintores em seus textos revelando a significação, por vezes obscura, dessas telas” (LICHTENSTEIN, 2004, p. 13).
A comparação entre as artes que, desde início, se estabeleceu na forma de uma controvérsia que discutia a superioridade da linguagem ou da imagem, foi retomada sob perspectivas diferentes por Lessing que, em 1766, em Laokoon, ou: sobre as fronteiras da pintura e da poesia, se propõe a discutir ambas as artes tomando como base a midialidade ao invés da estética, asseverando que toda arte se configura de acordo com sua midialidade específica, ou seja, sua materialidade ou meios físicos, que são determinantes no momento da criação, resultando em diferentes modalidades representativas, podendo produzir ou não o mesmo efeito (MOSER, 2007, p. 44-45).
             A teoria de Lessing que ressalta a espacialidade da pintura e a temporalidade da literatura lançou luz sobre aspectos que integram os estudos de intermidialidade. Sabe-se, hoje, que a heterogeneidade produzida no processo de transmidialização é inevitável por se tratar de mídias com especificidades diferentes. Liliane Louvel, por exemplo, no ensaio “A descrição ‘pictural’: Por uma poética do iconotexto”, postula que no deslocamento de um substrato narrativo de um suporte para outro a relação de identidade é impossível, mesmo porque, nesse jogo intermidiático, toda espécie de manipulação é permitida:

A relação de analogia não se reduz jamais a uma relação de identidade. Estabeleçamos que uma descrição será dita ‘pictural’ quando a predominância de ‘marcadores’ da picturalidade, aquilo que faz com que a imagem seja artística, seja um artefato, seja irrefutável [...] Pelo menos, teremos uma emulsão, jamais uma fusão total, seja um iconotexto. Haverá sempre um traço, o vestígio de um no outro. [...] Falaremos de ‘tradução’ ou, antes, de ‘translação’, como a ação de passar de um lugar a outro, de uma linguagem a outra, de um código semiológico a outro. Tratar-se-á de observar os modos de funcionamento desta ‘translação’, de recuperar os traços de heterogeneidade causada pela presença de um medium estranho no medium suporte, graças a marcadores textuais. (LOUVEL, 2006, p. 195-96)


A definição restritiva de ecfrase[1], que nasceu sob os auspícios do Ut pictura poesis de Horácio, passou por revisões radicais na contemporaneidade e teve seu âmbito ampliado. Laura M. Sager Eidt (2008, p. 9) que, em seu livro Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film, analisa quadros de diversos pintores e o tratamento ecfrástico ao qual são submetidos em diversos textos narrativos e filmes, argumenta que “enquanto a tradição restringia a ecfrase a poemas que descrevem ou analisam obras de arte, na atualidade esse termo é aceito e se aplica a todos os gêneros literários, tais como, o romance, o drama e o ensaio”[2], além do cinema, seu objeto de estudo na obra mencionada.
            Em um ensaio intitulado “Ekphrasis Reconsidered: On Verbal Representations of Non-Verbal Texts”, Claus Clüver também se manifesta a favor da expansão do conceito de ecfrase, quando inclui em seu âmbito não apenas textos visuais que abarcam as artes plásticas, mas também textos não visuais como danças e composições musicais. Em seu conceito ampliado, Clüver não faz distinção entre obras de arte reais ou imaginárias, postulando que as verbalizações de textos visuais completamente fictícios e/ou não identificados pelos críticos, mas passíveis de existir, são tão válidas quanto aquelas baseadas em textualidades de existência comprovada”[3] (CLÜVER, 2009, p. 26).




[1] Segundo Peter Wagner, ecfrase é um recurso poético ou retórico antigo que está sendo retomado e redefinido pelos críticos da contemporaneidade. O vocábulo é formado pelo prefixo “ek” ou “ec” que significa “originário de” ou “dentre”, e a raiz phrasis, um sinônimo do grego lexis ou hermeneia, e do latim dictio e elocutio (o verbo phrazein significa “contar, declarar, pronunciar”). Originariamente o termo significava “uma descrição completa e vívida” e apareceu, pela primeira vez, nos escritos retóricos atribuídos a Dionísio de Halicarnasso, tornando-se, em seguida, um exercício de retórica praticado nas escolas (WAGNER, 1996, p. 11-12).
[2] Na versão em inglês: “Whereas traditionally ekphrasis was confined to poems that describe or analyze works of art, it is now generally accepted and used as a term that applies to all literary genres, that is, novel, drama, as well as essay”.
[3] Dois dos mais famosos exemplos de ecfrase literária que descreve objetos fictícios ou pinturas imaginárias  são a descrição do escudo de Aquiles no 18º livro da Ilíada e o retrato metamórfico da obra ficcional de Oscar Wilde, intitulada O retrato de Dorian Gray.


O artigo, na íntegra, foi publicado na Revista Scripta Uniandrade, v. 9, n. 1, 2011, p. 186-198. Disponível em:
http://www.uniandrade.br/mestrado/pdf/Scripta%20Uniandrade%209_N.%201_2011.pdf

sexta-feira, 1 de junho de 2012




CROMATISMO E CONSTRUÇÃO NARRATIVA

O filme Herói (China, 2004), de Zhang Yimou, que perpetua as histórias Wuxia, muito populares na cultura oriental, trata da construção narrativa, usando o cromatismo como principal artifício. O que poderia ser absolutamente simples ganha complexidade no filme, que usa a visualidade do cinema para tornar concreta a história contada por Sem Nome ao rei de Qin, para que, através da narração de seus feitos, possa se aproximar do rei, para matá-lo. O rei, porém, ouvinte astuto, questiona vários detalhes da história que lhe é contada, chegando mesmo a descobrir o real intento de seu interlocutor. A partir da primeira desconfiança do rei, a mesma história ganha novas versões e cada uma delas é representada por uma cor, recurso bastante significativo, já que, do começo ao fim do filme, em uma escala crescente, o rei (e também o espectador) aproxima-se da verdade.
As primeiras cenas, que contam a morte de Céu, dão destaque ao cinza e a um amarelo escuro, consideradas cores neutras e, portanto, indefinidas e pouco vistosas. A partir daí, para explicar a morte dos outros dois personagens, Neve e Espada Quebrada, Sem Nome conta diversas versões, representadas pelas cores vermelha, azul, verde e branca. Como se vê, a ordem vai de um tom quente para tons frios, bem como das cores puras para as misturas, como o verde e o branco, que simboliza a união de todas as cores. Essa progressividade é bastante significativa, porque indica que a história do herói ao rei se faz, na verdade, pela soma dos detalhes e das versões, até chegar à branca, que alude à multiplicidade e, por isso, é a verdadeira, permitindo a correção de alguns desvios feitos pelo narrador, na expectativa de conseguir cumprir sua missão, sem que seu intento fosse, antes, descoberto pelo rei.


O efeito dessa organização narrativa, no filme, coloca em pauta o ponto-de-vista, realçado pela multiplicidade de versões para uma mesma história e pelas cores que o diretor utiliza para apresentá-las. A consequência disso é que, obrigando o narrador a transitar pelos vários fragmentos de sua história, vai-se ampliando o panorama mostrado na película, fora o fato de o espectador ser convidado a participar do instigante jogo de narração e interpretação, travado entre o herói e o rei, igualmente hábeis nas funções que desempenham.


O uso de uma simples história para fazer o filme dá grande relevo ao parentesco inquestionável entre literatura e cinema, pois este, através da cor e do movimento, confere exuberante plasticidade à história. Acrescente-se, ainda, que a relação entre o cromatismo e as diversas versões possibilita o uso de recursos recorrentes na arte literária, como o flashback e a metalinguagem, afinal, o filme vai se construindo à medida que o narrador retoma a história, tornando-a mais clara e verdadeira, a cada nova interferência. Apenas a título de comparação, cite-se Rashomon (Japão, 1950), de Akira Kurosawa, que também investe nas diferentes versões, para tentar elucidar um crime, anunciado logo no início da história.     

(Resumo do trabalho apresentado pela Prof. Dra. Verônica Daniel Kobs, no VI Seminário de Pesquisa da Uniandrade)