segunda-feira, 19 de março de 2012

Análise discursiva da música “Festa da Música” (1997), composição de Gabriel, O Pensador.

Prof.ª Dr.ª Eunice de Morais


O CD Quebra-cabeça (PENSADOR, Sony music,1997) é marcado por uma variedade da problemática social brasileira vivida no ano antecedente ao da sua publicação, quando a fome, o desemprego, a saúde, a educação e a cultura em geral do país estavam recheadas de promessas e vazias da prática (e este clima perdura).
A Música “Festa da Música” (número 11 do disco) vem com o tom polêmico e alegre do Hip Hop brasileiro e faz uma homenagem, segundo o compositor, “a todos que estiveram, estão ou estarão um dia na festa da Música popular brasileira”, lembrando  que “esta é uma obra de ficção” para aqueles que por ventura não se derem por satisfeitos com a forma como foram citados na obra.
O discurso de Gabriel é, já de início, o do sujeito discriminado por representar a classe econômica baixa que depende do transporte coletivo para ir à festa ( 175 – linha  de ônibus que passa pela Rua Antônio Carlos Jobim no Rio de Janeiro). Há aí a sua primeira identificação com o público referencial do discurso, que se completa com a idéia dos “barrados no baile” apresentada já  por Eduardo Dusek há alguns anos atrás. A discriminação continua com Gilberto Gil (negro e nordestino) entre outros representantes que vão “penetrar” na festa com Gabriel, que não tem nem mesmo convite.
A partir daí as características pessoais de cada representante da MPB será apresentada, por vezes citando trechos de músicas (“E aí Sandra de Sá! Bye Bye tristeza...”). A citação da presença do Tiririca e da ausência dos críticos que foram também barrados no baile lembra o fato de o cantor ter sido severamente repudiado pelos mesmos e ainda assim ter conquistado seu lugar na mídia (dona da festa) ainda que como modismo.
Ao referir-se à festa da música como “tupiniquim”, termo utilizado até mesmo por Oswald de Andrade em relação à arte brasileira como reflexo da origem  e pela criação de uma identidade nacional, o sujeito produtor do discurso retoma este questionamento sobre o que é originalmente brasileiro e sobre a diversidade da criação artística no país. Isto fica claro quando o texto apresenta representantes de todos os estilos musicais que compõem a história da nossa  música popular reunidos numa festa que acontece no Rio de Janeiro ( palco de grandes acontecimentos musicais) e numa rua com o nome de um dos grandes representantes da música Antônio Carlos Jobim. O clima de descontração e alegria, característicos do brasileiro, é ininterrupto, mesmo quando é citada a “presença” de Renato Russo como “um dos donos da festa” que está “no andar lá de cima”; há mortos que sobrevivem pela voz de outros e participam desta festa que é a música popular brasileira. O termo ‘festa’ no texto pode ser entendido, numa leitura inocente e até primária, como reunião comemorativa; mas também há um sentido negativo para o termo que indica lugar onde se faz o que quer e como se quer. Com este sentido, entende-se o discurso crítico, como não poderia deixar de ser, do compositor em relação ao caos que é o espaço e a falta de identidade da MPB, onde até Michael Jackson (que esteve no Brasil em 1996 para gravar cenas de seu clip musical) poderia roubar a cena, estar em primeiro lugar na mídia e se não o fez foi porque “uma brasília amarela dobrava a esquina”, lembrando o acidente com o avião que levava a banda “Mamonas assassinas” acontecido no mesmo ano e que, sendo algo trágico, no Brasil vende mais que qualquer acontecimento artístico. 
Depois deste relato sobre a festa tupiniquim da MPB, fica claro que o que importa não é o talento, o trabalho ou a arte brasileira, mas o que vende publicidade e o que não vende, o que está dentro e o que está fora da mídia ou da moda que a mídia cria e divulga.
A diversidade discursiva de Gabriel está dentro e fora do seu texto. Dentro porque relaciona estilos e vozes num mesmo espaço e tempo. A festa acontece num tempo indefinido que começou há muito tempo e não tem hora pra acabar e entre os presentes estão desde Gilberto Gil até Tiririca, representando públicos diversos e leituras diversas sobre o que é arte popular brasileira. Essa diversidade está também fora do texto, pois Gabriel usa uma linguagem habilmente informal e adequada ao ritmo do Hip Hop. A linguagem próxima da oralidade relaciona seu caráter polêmico e crítico aos fatos atuais e históricos daqueles que participaram ou que participam de um momento em que a música mistura seus valores estéticos e culturais a valores capitalistas ditados pela mídia brasileira, a verdadeira dona da “festa” em que se encontra nosso país.

FESTA DA MÚSICA Compositor: Gabriel, O pensador, C.D.: Quebra – Cabeça-Gravadora: Sony Music / 1997

HÁ MUITO TEMPO TÁ ROLANDO ESSA FESTA MANEIRA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
NINGUÉM ME CONVIDOU MAS EU QUERIA ENTRAR, PEGUEI O 175 E VIM DIRETO PRA CÁ
NA PORTARIA, O SEGURANÇA PEDIU O CRACHÁ DO GILBERTO GIL.
ELE APENAS SORRIU ACOMPANHADO POR CAETANO ,DJAVAN, PEPEU, ELBA, MORAES, ALCEU VALENÇA (XÁ COMIGO! DÁ LICENÇA!
ABRE ESSA PORTA CABRA DA PESTE) E FOI ASSIM QUE EU PENETREI COM A GALERA DO NORDESTE
BABY TÁ NA ÁREA , SENTI FIRMEZA! E AÍ SANDRA DE SÁ! – “BYE  BYE TRISTEZA ...”
BIRINIGHT À VONTADE A NOITE INTEIRA
OLHA O ED MOTTA ASSALTANDO A GELADEIRA
OLHA QUANTA GATA BONITA E GOSTOSA!
OLHA O TIRIRICA COM UMA NEGRA CHEIROSA 
UÉ! CADÊ OS CRÍTICOS?! NINGUÉM CONVIDOU? “BARRADOS NO BAILE UOUOU” 
NÃO É FESTA DO CABIDE, MAS O NEY TIROU A ROUPA 
BZZZ... PAULINHO MOSKA POUSOU NA MINHA SOPA 
CIDADE NEGRA APRESENTOU UM REGGAE NOTA CEM
TÁ ROLANDO UM SKANK TAMBÉM!
E O TIM MAIA ATÉ AGORA NEM PINTOU MAS O JORGE BENJOR TROUXE A BANDA QUE CHEGOU  “PRA ANIMAR A FESTA” 

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM QUE TÁ ROLANDO AQUI NA RUA ANTÔNIO CARLOS JOBIM 
TODO MUNDO TÁ PRESENTE E NÃO TEM HORA PRA ACABAR
 E MUITA GENTE AINDA TÁ PRA CHEGAR 

A FESTA TÁ CORRENDO BEM
O LOBÃO ATÉ AGORA NÃO FALOU MAL DE NINGUÉM
O BARÃO E OS TITÃS TÃO TOCANDO RAULZITO 
A RITA LEE TÁ VINDO ALI...
ÃNH? NÃO ACREDITO! ELA OLHOU PRA MIM E DISSE “BAILA COMIGO”
EU SENTI AQUELE FRIO NO UMBIGO
MAS É CLARO QUE ADOREI O CONVITE 
E FUI DANÇAR OUVINDO O SOM DO KID ABELHA, PARALAMAS E A BLITZ ( ISSO AQUI TÁ MUITO BOM, ISSO AQUI TÁ BOM DEMAIS...)
“SEGURA O TCHAN, AMARRA O TCHAN” (XÔ, SATANÁS!)
HÁ HÁ! LULU SANTOS ACABOU DE CHEGAR COM A PIMENTA MALAGUETA PRO PLANETA BALANÇAR O CHICO CESAR, SCIENCE, E O BUARQUE OBSERVAM UM PESSOAL DANÇANDO BREAK NO CHÃO 
E NO ANDAR DE CIMA UM DOS DONOS DA FESTA TA NA BOA TÁ EM PAZ, TÁ TOCANDO UM VIOLÃO: “FESTA ESTRANHA COM GENTE ESQUISITA, EU NÃO TÔ LEGAL, NÃO AGUENTO MAIS BIRITA”

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM
QUE TÁ ROLANDO AQUI NA RUA ANTÔNIO CARLOS JOBIM 
TODO MUNDO TÁ PRESENTE E NÃO TEM HORA PRA ACABAR
E MUITA GENTE AINDA ESTÁ PRA CHEGAR

CHOPP NA TULIPA, VINHO NA TAÇA
( CAMISINHA NA BOQUINHA DA GARRAFA!) ...
SALVE-SE QUEM PUDER! 
IH... O JOÃO GORDO VOMITOU NO MEU PÉ
FUI LIMPAR E DEI DE CARA COM OS RAIMUNDOS
QUE ME CONTARAM QUE ENTRARAM PELOS FUNDOS
PERGUNTEI PELO BANHEIRO E FIZ PAPEL DE MANÉ
OS SACANAS ME MANDARAM PRO BANHEIRO DE MULHER
AS MENINAS TAVAM LÁ
E FOI SÓ EU ENTRAR QUE A CÁSSIA ELLER, ZIZI POSSI E A GAL COMEÇARAM A GRITAR (AHHHHH!) QUANTA SAÚDE!
FERNANDA ABREU, DANIELA MERCURY, MARISA MONTE, DAÚDE... CALMA, EU NÃO VI NADA! 
A ÂNGELA RÔ  RÔ QUERIA ME DAR PORRADA
MAS OS TRÊS MALANDROS, MOREIRA, BE -  ZERRA E DICRÓ,
ME AJUDARAM A ESCAPAR DO PIOR FUI PRO FUNDO DE QUINTAL,
CASA DE BAMBA TODO MUNDO BEBE TODO MUNDO SAMBA 
BETH CARVALHO, ALCIONE, ZECA PAGODINHO, NEGUINHO DA BEIJA –FLOR...
DIZ AÍ MARTINHO! COMÉ QUE É , PROFESSOR? –
“É DEVAGAR, É DEVAGAR, DEVAGARINHO”

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM
QUE TÁ ROLANDO AQUI NA RUA ANTÔNIO CARLOS JOBIM
TODO MUNDO TÁ PRESENTE E NÃO TEM HORA PRA ACABAR
 E MUITA GENTE AINDA TÁ PRA CHEGAR

ESSA FESTA É UMA LOUCURA
OLHA LÁ O CARLINHOS BROWN COM O PESSOAL DO SEPULTURA
VIERAM COM OS ÍNDIOS XAVANTES
E A POLÍCIA VEIO ATRÁS TENTANDO DAR FLAGRANTE 
E-E-E-Ê! O INDIO TEM APITO E EU NÃO ENTENDI PORQUÊ 
COMEÇARAM A APITAR QUANDO A POLÍCIA CHEGOU 
MAS A GALERA DO CACHIMBO DA PAZ NEM ESCUTOU
PORQUE O OLODUM TAVA FAZENDO UM BATUQUE MANEIRO
ATÉ  O LEANDRO E LEONARDO DE MC! 
E O ZEZÉ DI CAMARGO E O LUCIANO FICARAM ZUANDO
E O FUNK ROLANDO!  AAH... VOCÊS TINHAM QUE VER!
CHITÃOZINHO E XORORÓ GRITANDO UH! TERERÊ! 
O PESSOAL DA JOVEM GUARDA AGITANDO SEM PARAR
ESTAVAM EM OUTRA FESTA MAS VIERAM PRA CÁ
PASSEI ALI POR PERTO E OUVI O ROBERTO COMENTAR:
“Ê HEI! QUE ONDA, QUE FESTA DE ARROMBA!”
TODO MUNDO NO MAIOR ASTRAL
MAS ROLOU UM BOATO QUE PREOCUPOU O PESSOAL
DIZIAM AS MÁS LÍNGUAS, À BOCA PEQUENA,
QUE O MICHAEL JACKSON TAVA CHEGANDO PRA ROUBAR A CENA
E FOI AÍ QUE A MARINA OUVIU UMA BUZINA
E TODOS FORAM PRA JANELA NA MAIOR ADRENALINA
UMA BRASÍLIA AMARELA DOBRAVA A ESQUINA 
ADIVINHA QUEM ERA?

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM...  
               

“Obs.: Esta obra de ficção é uma homenagem a todos que estiveram, estão ou estarão um dia na festa da música brasileira”. (GABRIEL, O PENSADOR)


(Este texto foi elaborado, em 2000, durante o curso de Especialização em Linguística Aplicada ao ensino de Língua Materna, UFPR)

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