segunda-feira, 2 de abril de 2012

Jornalismo e Monteiro Lobato

Sigrid Renaux   


Se o Jornalismo tem, entre suas funções, coletar, investigar, analisar e transmitir ao público informações da atualidade, a reportagem de Peter Gwin “Rhino Wars” (“Guerra por rinocerontes”), na revista National Geographic (vol.221, no.3, March 2012, p. 106-125), traz um relato e fotografias estarrecedores sobre o que os “poachers” (caçadores furtivos) fazem com os rinocerontes, a fim de obter seus chifres, que rivalizam com o preço do ouro no mercado negro (um chifre de aproximadamente 4 quilos pode render até 360 mil dólares).
Como a legenda da primeira fotografia da reportagem já denuncia,

Os guardas de caça acharam este rinoceronte negro perambulando no Vale Savé de Conservação no Zimbawe, após os caçadores furtivos terem atirado nele diversas vezes e cortado ambos os chifres. Os veterinários tiveram de provocar a eutanásia no animal, porque seu ombro destroçado não podia suportar seu peso. Nos últimos seis anos os caçadores furtivos mataram mais de mil rinocerontes africanos por causa dos chifres, que são contrabandeados para a Ásia para uso na medicina tradicional” (p. 106-7).

Além de duas espécies já extintas em 2011, as cinco espécies ainda existentes de rinocerontes estão sendo ameaçadas tanto pelos caçadores quanto pela perda de habitat na África e Ásia.
Uma outra fotografia mostra uma fêmea, sem o chifre, pastando junto a um macho, com a seguinte legenda:

Uma fêmea de rinoceronte-branco pasta com um macho, que se tornou seu companheiro depois de um ataque de caçadores furtivos na Província de KwaZulu-Natal, África do Sul. Usando um helicóptero, uma gangue   localizou a ela e a seu filhote de 4 semanas, atirou nela com uma flecha tranquilizadora e cortou seus chifres com um serrote. Os guardas florestais acharam-na uma semana mais tarde, procurando seu filhote, que havia morrido, provavelmente de fome e desidratação. (p. 120-121)

Por outro lado, a “guerra” que está sendo travada entre os guardas de caça e os caçadores furtivos é interminável, levando inclusive à morte ou à prisão desses caçadores. Simultaneamente, há também fazendeiros que criam rinocerontes para vender legalmente seus chifres, que são retirados (sob anestesia) por um veterinário. Como os chifres são cortados a 3 polegadas acima da base, eles crescerão novamente em dois anos. Alguns críticos desta prática alegam que ela deixa os animais sem proteção contra predadores naturais. Os favoráveis à retirada dos chifres argumentam que isso detém os caçadores furtivos e reduz o número de rinocerontes que morrem de feridas causadas pelas lutas por território e por companheiros.
Uma outra fotografia mostra o que está sendo feito atualmente pelas autoridades, como consta na legenda:

De olhos vendados e anestesiado, um rinoceronte-negro é transportado num voo de 10 minutos de helicóptero da Província de Cabo Leste na África do Sul para um caminhão que o levará a um novo lar a 900 milhas de distância. Planejado para retirar os animais de uma região difícil, esses voos fazem parte de uma tentativa de realocar os rinocerontes-negros em perigo de extinção em áreas mais apropriadas a fim de aumentar seu número como também sua pastagem natural. (p.108-9)

Esta reportagem - apresentando as diversas facetas de uma realidade que nos choca profundamente, ao vermos o sofrimento e extermínio dos rinocerontes perpetrados pelo homem, por cobiça, mesmo que haja esforços para combater essa prática e auxiliar na recuperação dessa espécie de animais, em perigo de extinção -, faz-nos lembrar de nosso Monteiro Lobato e, especificamente, de Caçadas de Pedrinho. Diante de tanta barbárie, voltemos a ler sobre as aventuras de Quindim (como ele será chamado nas obras posteriores), no Sítio do Picapau Amarelo.
 Como estamos todos lembrados, um rinoceronte havia fugido de um circo de cavalinhos no Rio de Janeiro para as matas da Tijuca, “tomando depois rumo desconhecido” (LOBATO, 1944, p. 60). Como continua Lobato, “esse fato causou o maior reboliço no Brasil inteiro. Os jornais não tratavam de outra coisa. Até uma revolução, que estava marcada para aquela semana, foi adiada, porque os conspiradores acharam mais interessante acompanhar o caso do rinoceronte do que dar tiros nos adversários”, associando assim “ realidade” e ficção e ainda dando uma torção cômica às consequências deste fato.
Quando o rinoceronte chegou à mata virgem do sítio de dona Benta, os “besouros espiões” de Emília a avisaram e a boneca acaba conseguindo, com a ajuda de Cleo, trocá-lo com Pedrinho pelo seu “carrinho de cabrito”. Após terem achado o “monstro” perto da Figueira Brava – numa aventura engraçadíssima, pois, a fim de avistá-lo, treparam numa “pedra preta” que era o próprio paquiderme – , terem retornado ao sítio graças ao pó de pirlimpimpim no bolso de Emília e comunicado a Dona Benta sobre a descoberta, esta, por sua vez, enviou um telegrama ao Rio para que fossem tomadas providências. Para grande susto de tia Nastácia, na manhã seguinte, o animal estava “a vinte passos de distância, olhando para a casa com seus olhos miúdos” (p. 77), “quieto, de cara pacífica, sem mostra nenhuma de ânimo agressivo.(...) Depois, mansamente, dirigiu-se à porteira e lá se deitou de atravessado” (78), já demonstrando, assim, que não havia por que terem medo de um animal selvagem.
Durante as diversas peripécias dos “homens da polícia secreta”, que haviam vindo ao sítio para caçar o animal, mas que na realidade queriam adiar a “caça” para não prejudicarem seus empregos - como a construção de uma linha telefônica e outra de cabos aéreos para transportar “um canhãozinho e uma metralhadora” para atirar no rinoceronte -, o próprio rinoceronte “foi se familiarizando não só com as pessoas do sítio, como ainda com o pelotão de caçadores” e até ajudou os construtores a arrancarem um poste, “trabalhando tal qual um elefante manso da Índia” (86), confirmando, mais uma vez, sua índole pacífica.
O trecho a seguir é especialmente sugestivo da humanidade que Lobato transmite ao rinoceronte, além de acentuar a condição de cativeiro a que são submetidos os animais de circo:

   Emília tornara-se amiga íntima do animalão. Ia sempre à Figueira Brava vê-lo pastar arbustos, e com ele entretinha-se horas, a ouvir casos da vida africana. Era um rinoceronte de boa paz, já velho, com a ferocidade nativa quebrada por longos anos de cativeiro no circo. Só queria uma coisa: sossego. Por isso fugira do circo e viera esconder-se ali, no silêncio do capoeirão dos taquaruçus. (p. 86-7)

Como a conversa entre ambos revela, o rinoceronte “arrepiou-se todo” ao saber que esses homens queriam dar cabo da sua vida: “- Mas por que? Indagou em tom magoado. Que mal fiz eu a essa gente?”. E a resposta de Emilia, como porta-voz de Lobato, revela o motivo pelo qual querem caçá-lo:
- Nenhum, mas você é o que os homens chamam “caça” – e o que é caça deve ser caçado. Quando os homens encontram no seu caminho uma lebre, uma preázinha, um inambu, um pato selvagem ou o que seja, ficam logo assanhadíssimos para matá-lo – só por isso, porque é caça. Mas você não tenha medo que não será caçado. Hei de dar um jeito. (p.87)

Estas palavras nos remetem, por um lado, à denúncia da reportagem acima, na qual os homens exterminam os rinocerontes por cobiça, e, por outro, ao trabalho das atuais sociedades protetoras de animais selvagens, que tentam, como Emília, salvá-los de serem capturados e/ou mortos pelos homens, quaisquer que sejam os motivos: caça, cobiça, crueldade. 
Após o malogro dos tiros de canhão – cuja pólvora Emília havia trocado por farinha de mandioca -, o final feliz da história dá-se não só com a expulsão, pelo rinoceronte, dos homens do serviço secreto, mas principalmente com mudança da vida no Sítio “depois da entrada do rinoceronte para o bando” (p. 93): todas as tardes vinha prosear com Emília e o visconde; depois brincavam de “esconde-esconde, de chicote queimado, de pegador”; e Emília “logo inventou jeito de montar a cavalo no chifre dele para passear pelo terreiro” (93), no que foi seguida, aos poucos, pelos outros: Pedrinho, Cléo, Narizinho, e, por fim, dona Benta.
 Como comenta Lobato, ao dona Benta subir ao carrinho e ser puxada pelo rinoceronte  -“quatro vezes até a porteira, ida e volta”! -, “Se houvesse por ali um aparelho de cinema podia ser tirada a melhor fita do mundo...” (p. 97). Essas palavras refletem, em última análise, sua profunda percepção da importância e do encanto que a convivência pacífica entre homens e animais proporciona a todos nós e, mais ainda, como ele conseguiu transmitir essa mensagem para as crianças e, assim, continuar a conscientizar e sensibilizar leitores no presente e no futuro.
Literatura infantil e jornalismo podem assim unir-se num novo lema “E vivam os Quindins!” 

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