História de uma flor
Por José Saramago
Aí pelos começos dos anos 70, quando eu ainda não passava de um escritor principiante, um editor de Lisboa teve a insólita ideia de me pedir que escrevesse um conto para crianças. Não estava eu nada certo de poder desobrigar-me dignamente da encomenda, por isso, além da história de uma flor que estava a morrer à míngua de uma gota de água, fui-me curando em saúde pondo o narrador a desculpar-se por não saber escrever histórias para a gente miúda, a quem, por outro lado, diplomaticamente, convidava a reescrever com as suas próprias palavras a história que eu lhes contava. O filho pequeno de uma amiga minha, a quem tive o desplante de oferecer o livrinho, confirmou sem piedade a minha suspeita: “Realmente”, disse à mãe, “ele não sabe escrever histórias para crianças”. Aguentei o golpe e tentei não pensar mais naquela frustrada tentativa de vir a reunir-me com os irmãos Grimm no paraíso dos contos infantis. Passou o tempo, escrevi outros livros que tiveram melhor sorte, e um dia recebo uma chamada telefónica do meu editor Zeferino Coelho a comunicar-me que estava a pensar em reeditar o meu conto para crianças. Disse-lhe que devia haver um engano, porque eu nunca tinha escrito nada para crianças. Quer dizer, havia esquecido totalmente o infausto acontecimento. Mas, há que dizê-lo, foi assim que começou a segunda vida de “A maior flor do mundo”, agora com a bênção das extraordinárias colagens que João Caetano fez para a nova edição e que contribuíram de maneira definitiva para o seu êxito. Milhares de novas histórias (milhares, sim, não exagero) foram escritas nas escolas primárias de Portugal, Espanha e meio mundo, milhares de versões em que milhares de crianças demonstraram a sua capacidade criadora, não só como pequenos narradores, também como incipientes ilustradores. Afinal, o filho da minha amiga não tivera razão, o conto, de transparente simplicidade, havia encontrado os seus leitores. Mas as coisas não ficaram por aqui. Há alguns anos, Juan Pablo Etcheverry e Chelo Loureiro, que vivem na Galiza e trabalham em cinema, procuraram-me com o objectivo de fazer da "Flor” uma animação em plasticina, para a qual Emilio Aragón já tinha composto uma bela música. Pareceu-me interessante a ideia, dei-lhes a autorização que pediam e, passado o tempo necessário, inútil dizer que depois de muitos sacrifícios e dificuldades, o filme foi estreado. Eu próprio apareço nele, de chapéu e bastante favorecido na idade. São quinze minutos da melhor animação, que o público tem aplaudido em salas e festivais de cinema, como foram, no passado recente, os casos de Japão e Alasca. Como foi igualmente o prémio que acaba de lhe ser atribuído no Festival de Cinema Ecológico de Tenerife, felizmente ressurgido de uma paragem forçada de alguns anos. Chelo veio a nossa casa, trouxe-nos o prémio, uma escultura representando uma planta que parece querer ascender até ao sol e que, muito provavelmente, irá continuar a sua existência na Casa dos Bicos, em Lisboa, para mostrar como neste mundo tudo está ligado a tudo, sonho, criação, obra. É o que nos vale, o trabalho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário