Lá vem cliché -- mas convenhamos que os clichés exercem sua função -- o filme não tem o mesmo alcance que o livro. Não se trata da velha discussão de que filmes baseados em livros tenham que ser tão bons como os livros, sequer se trata de uma questão de fidelidade à fonte (outro debate passé!). Não é isso. Uma adaptação, seja ela fílmica, cênica, etc., é outra coisa. Filme é filme e livro é livro, algo óbvio, mas nem sempre observado. Um livro e um filme são sistemas de representação regidos por seus próprios códigos e especificidades. Nem vou entrar no lado técnico e observem que aqui eu apenas argumento que o filme ficou muito a dever do alcance estético do livro. Mas é justamente isso que frustra grandes entusiastas como eu, fã de carteirinha do Philip Pullman, e naturalmente li a trilogia His dark materials. Além da trilogia, li um livro sobre a ciência por trás do livro, The Science of Philip Pullman's His dark materials, e fiquei fascinada com os vários conceitos da física quântica e com os mundos alternativos que permeiam a narrativa de Pullman. Depois, li o Darkness Illuminated e o Darkness Visible: inside the world of Philip Pullman, o primeiro sobre a produção teatral e o segundo sobre o autor e sua ficção, respectivamente. No entanto, mais legal do que as minhas investidas de leitura na e sobre a obra de Pullman, foi que, em fevereiro de 2005, assisti a colossal adaptação teatral do His dark materials I e II no National Theatre (Londres) - foram duas seções de três horas cada e nem deu para cansar! Eis a prova que o livro não precisa reinar sempre nas nossas preferências, essa produção foi premiada até dizer chega e alcançou o maior sucesso de público e crítica do aclamado teatro londrino. Mas quero falar um pouquinho sobre o livro a fim de tentar dar ideia da magia do sucesso estrondoso da trilogia de Philip Pullman. É até fácil de detectar, ainda que seja compreensivelmente difícil de executar. Com uma leitura que flui deliciosamente, o enredo mescla física, aventura, mistério e magia com o velho e indefectível tema do bem versus mal, só que de uma perspectiva iconoclasta. O bem é incorporado pela orfã Lyra que ganha o direito de possuir a incrível bússola dourada (o aletiômetro), instrumento que possui o poder de revelar a verdade. Lyra, acompanhada de seu daemon, empreende uma viagem ao Polo Norte a fim de resgatar seu amigo Roger Parslow, que havia sido seqüestrado pelas forças do mal. A busca é fascinante pois ela tem que enfrentar as Feiticeiras do Norte, os Ursos Polares e mil outros seres fantásticos. No final das contas, como nas narrativas clássicas, essas viagens e a própria busca, se tornam um dos Leitmotive centrais da narrativa. Porque o simbolismo da busca (quest) e da viagem é algo intimamente mítico, cuja força toca todos nós: a vida é uma grande narrativa de viagem e busca, lembremos da Odisséia e de Ulisses (e de milhares de outros textos semelhantes, clássicos ou não). Talvez seja principalmente aí que o filme encalha e não sai da mediocridade, a despeito dos esforços excessivamente plásticos (botox and all) de Nicole Kidman. Do Daniel Craig, que faz o papel do Lord Asriel, pesquisador da Universidade de Oxford nem vou comentar, porque ele nem merece o tempo da digitação – basta dizer que o grande ator da versão teatral, David Harewood, dá um banho de interpretação na atuação insípida e sem personalidade do Craig – aqueles que assistiram o 007 Quantum of Solace devem saber sobre o que estou me referindo.
De qualquer maneira, talvez a maior riqueza de His dark materials seja a de nos transportar a esses mundos imaginários que nos fazem sentir um pouco como a brava heroína. Lyra é capaz de ir aos confins do mundo e enfrentar seus próprios medos para resgatar seu amigo. Falando assim parece simples, não é mesmo? Não é fácil traduzir em um resumo a multiplicidade dos mundos e realidades alternativos que co-existem paralelamente. Mundos habitados por ursos gigantes e guerreiros mínimos, porém perigosíssimos. Anjos e daemons, estes últimos provavelmente a criação mais original (e encantadora!) de Pullman, animais que são a personificação de seus donos, a alma da pessoa. Mas isso é apenas o começo, a viagem que a menina Lyra empreende a leva a um universo subterrâneo obscuro (dark) que tem clara ressonância com O paraíso perdido de John Milton. A escolha do título da versão fílmica, que deixa a idéia do obscuro de lado, presente no título do livro e essencial na trama, His dark materials, prioriza a bússola e simplifica um enredo com uma estrutura intricada. Tudo bem, como poderia o cinema dar vida à esse mundo rico de magia, mito e fantasia? Bem, o teatro pôde, ao vivo, real time. Eu vi e a excelente recepção da crítica e do público confirma. O cinema, desta vez, fez feio.
Produção teatral do National Theatre, Londres. Adaptador para o roteiro cênico: Nicholas Wright, Diretor: Nicholas Hytner. Sobre o sucesso da produção, leia aqui.
(Este texto, com pequenas modificações, foi escrito e publicado no meu blog pessoal, em 2008.)
Cristiane Busato Smith