terça-feira, 27 de março de 2012

Revisitar o mito / Recycling Myths

 Prof.ª Dr.ª Mail Marques Azevedo (Uniandrade).






Participarei de 2 a 4 de maio do Colóquio Internacional Revisitar o Mito/ Recycling Myths, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, organizado em conjunto pelos Centros de Estudos Anglísticos e de Estudos Clássicos da instituição.

Os tópicos preferenciais de intervenção do evento incluem desde a origem dos mitos até sua relação com a ciência, a ética, a política, a psicanálise, a religião e a filosofia, além das relações interartes e, no campo especificamente literário, os mitos e os contos populares e de fadas, questões de gênero, a recepção dos mitos, e o mito no pós-modernismo. O elevado número de inscrições, que traduz o interesse despertado pelo amplo espectro da temática. levou os organizadores a estender a duração do evento.

Desprezado pela historiografia positivista, o mito passa a ser revalorizado pelo movimento romântico do século XIX, como “construção simbólica portadora de um sentido e de um ancoramento afetivo no real.” Assim, é objetivo do colóquio verificar como “os mitos se afirmam e se recriam, inquirir acerca dos múltiplos laços que, individualmente e politicamente, os homens e as sociedades estabelecem com os mitos” (Citado do material eletrônico de divulgação).

Para tema do meu trabalho, escolhi a sobrevivência de estruturas míticas, em ícones dos grupos sociais no século XXI criados pela mass media, que cumprem ainda hoje sua função de narrativas de valor paradigmático para as atividades humanas, e de lembrete constante da existência das realidades absolutas (ELIADE, 1972). Inicialmente, observa-se como as narrativas míticas que, gradativamente, perdem o caráter sagrado de explicação verdadeira para dar origem a formas convencionais como os contos folclóricos, de fadas e histórias de terror, representam, nesta última forma, uma tendência atual acentuada.

É de conhecimento comum que histórias sobre monstros, bruxos, lobisomens e outros seres sobrenaturais estão na ordem do dia, um veio explorado por uma sucessão de autores, elevados instantaneamente à categoria de best-sellers. Desde que J.K. Rawlings publicou, em 1997, Harry Potter e a pedra filosofal, o primeiro de uma série de oito volumes, cujas vendas atingiram a espantosa cifra de um bilhão de exemplares, observa-se uma intensificação do gosto popular por narrativas de terror, apropriadas por diferentes mídias, especialmente pelo cinema.

Na versão americana do sobrenatural para adolescentes, que não se fez esperar, a série Crepúsculo, igualmente transformada em filme, a autora Stephenie Meyer cria uma fantástica história de amor entre uma jovem, Bella Swan, e um vampiro, Edward Cullen, rapaz de bela aparência que, apesar do amor pela heroína, não consegue superar a atração atávica por sangue. O herói-vampiro cede a seus instintos apenas no dénoument do romance, quando a heroína faz a opção pelo tenebroso mundo do amado.

Na opinião da ala jovem feminina de minha família aos dezesseis anos, leitora ávida da série Crepúsculo e espectadora fiel dos filmes o melhor mesmo é o livro que está lendo agora, Jogos vorazes, da norte-americana Suzanne Collins. Ao ler a crítica do filme, baseado no romance, ambos já lançados no Brasil, senti-me de início repelida pela temática central. Em um mundo pós-apocalíptico, um estado autoritário domina os cidadãos pelo terror: a cada ano, as doze regiões que constituem o país devem enviar dois adolescentes, escolhidos por sorteio, para um combate mortal, no centro de controle absoluto, a nefanda Capital do país. Os vinte e quatro adolescentes devem guerrear entre si, até que apenas um deles permaneça vivo.

Ao ler as declarações da autora sobre a inspiração da trama no mito grego de Teseu e o Minotauro, que admira desde a infância, percebe-se a diferença do impacto provocado por uma narrativa da mitologia grega, a milênios de distância, e sua transformação em um romance atual (embora situado em um vago tempo futuro) e nas imagens muito presentes da projeção cinematográfica. A referência ao mito lança nova luz sobre os Jogos vorazes .É evidente que o caráter de narrativa exemplar desaparece na versão reciclada do mito grego, que não provoca o efeito esperado de respeito a hierarquias nem de temor do castigo. Revela-se, no entanto, uma força de atração poderosa para os espíritos jovens que nela encontram algum tipo de resposta para as questões essenciais da vida humana: por que viver e por que morrer. O emprego do mito apela para a herança atávica de todo ser humano, o inconsciente coletivo da espécie, na nomenclatura de Jung.

Embora o mito tenha perdido o caráter de explicação primordial, está cada vez mais enraizado em nossa tradição cultural e em toda a literatura mundial. A esse respeito, W.R. Irwin enfatiza a busca empreendida pelo romancista moderno por uma mitologia adequada, “utilizando mitologias herdadas, ou criando suas próprias mitologias, por vezes retrabalhando o material da tradição” (IRWIN, 1976, p. 159-60). Possivelmente Irwin se refere a praticantes da “alta literatura”, mas suas considerações se aplicam aos exemplos da literatura de caráter popular discutidos acima.

Tanto Harry Potter, como os protagonistas de Crepúsculo e Jogos vorazes saem vitoriosos das batalhas que devem empreender contra forças superiores, sobrenaturais ou não. Esta, segundo Eric Rabkin, é uma das funções dos mundos fantásticos: oferecer segurança e estabilidade como alternativas ao mundo real de flutuação e crescimento. As narrativas fantásticas sempre terminam por assegurar a ordem, mostrando que, a despeito de monstros e dragões, ou dos elementos apavorantes dos contos de terror, o mundo da fantasia é um mundo seguro. E é este mundo seguro que minha jovem leitora e seus pares buscam nas versões recicladas do mito na ficção atual.




REFERÊNCIAS

ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.

IRWIN, W.E. The Game of the Impossible. Urbana: Un. of Illinois Press, 1976.

RABKIN, E. The Fantastic in Literature. Princeton: Princeton Un. Press, 1977.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Análise discursiva da música “Festa da Música” (1997), composição de Gabriel, O Pensador.

Prof.ª Dr.ª Eunice de Morais


O CD Quebra-cabeça (PENSADOR, Sony music,1997) é marcado por uma variedade da problemática social brasileira vivida no ano antecedente ao da sua publicação, quando a fome, o desemprego, a saúde, a educação e a cultura em geral do país estavam recheadas de promessas e vazias da prática (e este clima perdura).
A Música “Festa da Música” (número 11 do disco) vem com o tom polêmico e alegre do Hip Hop brasileiro e faz uma homenagem, segundo o compositor, “a todos que estiveram, estão ou estarão um dia na festa da Música popular brasileira”, lembrando  que “esta é uma obra de ficção” para aqueles que por ventura não se derem por satisfeitos com a forma como foram citados na obra.
O discurso de Gabriel é, já de início, o do sujeito discriminado por representar a classe econômica baixa que depende do transporte coletivo para ir à festa ( 175 – linha  de ônibus que passa pela Rua Antônio Carlos Jobim no Rio de Janeiro). Há aí a sua primeira identificação com o público referencial do discurso, que se completa com a idéia dos “barrados no baile” apresentada já  por Eduardo Dusek há alguns anos atrás. A discriminação continua com Gilberto Gil (negro e nordestino) entre outros representantes que vão “penetrar” na festa com Gabriel, que não tem nem mesmo convite.
A partir daí as características pessoais de cada representante da MPB será apresentada, por vezes citando trechos de músicas (“E aí Sandra de Sá! Bye Bye tristeza...”). A citação da presença do Tiririca e da ausência dos críticos que foram também barrados no baile lembra o fato de o cantor ter sido severamente repudiado pelos mesmos e ainda assim ter conquistado seu lugar na mídia (dona da festa) ainda que como modismo.
Ao referir-se à festa da música como “tupiniquim”, termo utilizado até mesmo por Oswald de Andrade em relação à arte brasileira como reflexo da origem  e pela criação de uma identidade nacional, o sujeito produtor do discurso retoma este questionamento sobre o que é originalmente brasileiro e sobre a diversidade da criação artística no país. Isto fica claro quando o texto apresenta representantes de todos os estilos musicais que compõem a história da nossa  música popular reunidos numa festa que acontece no Rio de Janeiro ( palco de grandes acontecimentos musicais) e numa rua com o nome de um dos grandes representantes da música Antônio Carlos Jobim. O clima de descontração e alegria, característicos do brasileiro, é ininterrupto, mesmo quando é citada a “presença” de Renato Russo como “um dos donos da festa” que está “no andar lá de cima”; há mortos que sobrevivem pela voz de outros e participam desta festa que é a música popular brasileira. O termo ‘festa’ no texto pode ser entendido, numa leitura inocente e até primária, como reunião comemorativa; mas também há um sentido negativo para o termo que indica lugar onde se faz o que quer e como se quer. Com este sentido, entende-se o discurso crítico, como não poderia deixar de ser, do compositor em relação ao caos que é o espaço e a falta de identidade da MPB, onde até Michael Jackson (que esteve no Brasil em 1996 para gravar cenas de seu clip musical) poderia roubar a cena, estar em primeiro lugar na mídia e se não o fez foi porque “uma brasília amarela dobrava a esquina”, lembrando o acidente com o avião que levava a banda “Mamonas assassinas” acontecido no mesmo ano e que, sendo algo trágico, no Brasil vende mais que qualquer acontecimento artístico. 
Depois deste relato sobre a festa tupiniquim da MPB, fica claro que o que importa não é o talento, o trabalho ou a arte brasileira, mas o que vende publicidade e o que não vende, o que está dentro e o que está fora da mídia ou da moda que a mídia cria e divulga.
A diversidade discursiva de Gabriel está dentro e fora do seu texto. Dentro porque relaciona estilos e vozes num mesmo espaço e tempo. A festa acontece num tempo indefinido que começou há muito tempo e não tem hora pra acabar e entre os presentes estão desde Gilberto Gil até Tiririca, representando públicos diversos e leituras diversas sobre o que é arte popular brasileira. Essa diversidade está também fora do texto, pois Gabriel usa uma linguagem habilmente informal e adequada ao ritmo do Hip Hop. A linguagem próxima da oralidade relaciona seu caráter polêmico e crítico aos fatos atuais e históricos daqueles que participaram ou que participam de um momento em que a música mistura seus valores estéticos e culturais a valores capitalistas ditados pela mídia brasileira, a verdadeira dona da “festa” em que se encontra nosso país.

FESTA DA MÚSICA Compositor: Gabriel, O pensador, C.D.: Quebra – Cabeça-Gravadora: Sony Music / 1997

HÁ MUITO TEMPO TÁ ROLANDO ESSA FESTA MANEIRA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
NINGUÉM ME CONVIDOU MAS EU QUERIA ENTRAR, PEGUEI O 175 E VIM DIRETO PRA CÁ
NA PORTARIA, O SEGURANÇA PEDIU O CRACHÁ DO GILBERTO GIL.
ELE APENAS SORRIU ACOMPANHADO POR CAETANO ,DJAVAN, PEPEU, ELBA, MORAES, ALCEU VALENÇA (XÁ COMIGO! DÁ LICENÇA!
ABRE ESSA PORTA CABRA DA PESTE) E FOI ASSIM QUE EU PENETREI COM A GALERA DO NORDESTE
BABY TÁ NA ÁREA , SENTI FIRMEZA! E AÍ SANDRA DE SÁ! – “BYE  BYE TRISTEZA ...”
BIRINIGHT À VONTADE A NOITE INTEIRA
OLHA O ED MOTTA ASSALTANDO A GELADEIRA
OLHA QUANTA GATA BONITA E GOSTOSA!
OLHA O TIRIRICA COM UMA NEGRA CHEIROSA 
UÉ! CADÊ OS CRÍTICOS?! NINGUÉM CONVIDOU? “BARRADOS NO BAILE UOUOU” 
NÃO É FESTA DO CABIDE, MAS O NEY TIROU A ROUPA 
BZZZ... PAULINHO MOSKA POUSOU NA MINHA SOPA 
CIDADE NEGRA APRESENTOU UM REGGAE NOTA CEM
TÁ ROLANDO UM SKANK TAMBÉM!
E O TIM MAIA ATÉ AGORA NEM PINTOU MAS O JORGE BENJOR TROUXE A BANDA QUE CHEGOU  “PRA ANIMAR A FESTA” 

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM QUE TÁ ROLANDO AQUI NA RUA ANTÔNIO CARLOS JOBIM 
TODO MUNDO TÁ PRESENTE E NÃO TEM HORA PRA ACABAR
 E MUITA GENTE AINDA TÁ PRA CHEGAR 

A FESTA TÁ CORRENDO BEM
O LOBÃO ATÉ AGORA NÃO FALOU MAL DE NINGUÉM
O BARÃO E OS TITÃS TÃO TOCANDO RAULZITO 
A RITA LEE TÁ VINDO ALI...
ÃNH? NÃO ACREDITO! ELA OLHOU PRA MIM E DISSE “BAILA COMIGO”
EU SENTI AQUELE FRIO NO UMBIGO
MAS É CLARO QUE ADOREI O CONVITE 
E FUI DANÇAR OUVINDO O SOM DO KID ABELHA, PARALAMAS E A BLITZ ( ISSO AQUI TÁ MUITO BOM, ISSO AQUI TÁ BOM DEMAIS...)
“SEGURA O TCHAN, AMARRA O TCHAN” (XÔ, SATANÁS!)
HÁ HÁ! LULU SANTOS ACABOU DE CHEGAR COM A PIMENTA MALAGUETA PRO PLANETA BALANÇAR O CHICO CESAR, SCIENCE, E O BUARQUE OBSERVAM UM PESSOAL DANÇANDO BREAK NO CHÃO 
E NO ANDAR DE CIMA UM DOS DONOS DA FESTA TA NA BOA TÁ EM PAZ, TÁ TOCANDO UM VIOLÃO: “FESTA ESTRANHA COM GENTE ESQUISITA, EU NÃO TÔ LEGAL, NÃO AGUENTO MAIS BIRITA”

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM
QUE TÁ ROLANDO AQUI NA RUA ANTÔNIO CARLOS JOBIM 
TODO MUNDO TÁ PRESENTE E NÃO TEM HORA PRA ACABAR
E MUITA GENTE AINDA ESTÁ PRA CHEGAR

CHOPP NA TULIPA, VINHO NA TAÇA
( CAMISINHA NA BOQUINHA DA GARRAFA!) ...
SALVE-SE QUEM PUDER! 
IH... O JOÃO GORDO VOMITOU NO MEU PÉ
FUI LIMPAR E DEI DE CARA COM OS RAIMUNDOS
QUE ME CONTARAM QUE ENTRARAM PELOS FUNDOS
PERGUNTEI PELO BANHEIRO E FIZ PAPEL DE MANÉ
OS SACANAS ME MANDARAM PRO BANHEIRO DE MULHER
AS MENINAS TAVAM LÁ
E FOI SÓ EU ENTRAR QUE A CÁSSIA ELLER, ZIZI POSSI E A GAL COMEÇARAM A GRITAR (AHHHHH!) QUANTA SAÚDE!
FERNANDA ABREU, DANIELA MERCURY, MARISA MONTE, DAÚDE... CALMA, EU NÃO VI NADA! 
A ÂNGELA RÔ  RÔ QUERIA ME DAR PORRADA
MAS OS TRÊS MALANDROS, MOREIRA, BE -  ZERRA E DICRÓ,
ME AJUDARAM A ESCAPAR DO PIOR FUI PRO FUNDO DE QUINTAL,
CASA DE BAMBA TODO MUNDO BEBE TODO MUNDO SAMBA 
BETH CARVALHO, ALCIONE, ZECA PAGODINHO, NEGUINHO DA BEIJA –FLOR...
DIZ AÍ MARTINHO! COMÉ QUE É , PROFESSOR? –
“É DEVAGAR, É DEVAGAR, DEVAGARINHO”

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM
QUE TÁ ROLANDO AQUI NA RUA ANTÔNIO CARLOS JOBIM
TODO MUNDO TÁ PRESENTE E NÃO TEM HORA PRA ACABAR
 E MUITA GENTE AINDA TÁ PRA CHEGAR

ESSA FESTA É UMA LOUCURA
OLHA LÁ O CARLINHOS BROWN COM O PESSOAL DO SEPULTURA
VIERAM COM OS ÍNDIOS XAVANTES
E A POLÍCIA VEIO ATRÁS TENTANDO DAR FLAGRANTE 
E-E-E-Ê! O INDIO TEM APITO E EU NÃO ENTENDI PORQUÊ 
COMEÇARAM A APITAR QUANDO A POLÍCIA CHEGOU 
MAS A GALERA DO CACHIMBO DA PAZ NEM ESCUTOU
PORQUE O OLODUM TAVA FAZENDO UM BATUQUE MANEIRO
ATÉ  O LEANDRO E LEONARDO DE MC! 
E O ZEZÉ DI CAMARGO E O LUCIANO FICARAM ZUANDO
E O FUNK ROLANDO!  AAH... VOCÊS TINHAM QUE VER!
CHITÃOZINHO E XORORÓ GRITANDO UH! TERERÊ! 
O PESSOAL DA JOVEM GUARDA AGITANDO SEM PARAR
ESTAVAM EM OUTRA FESTA MAS VIERAM PRA CÁ
PASSEI ALI POR PERTO E OUVI O ROBERTO COMENTAR:
“Ê HEI! QUE ONDA, QUE FESTA DE ARROMBA!”
TODO MUNDO NO MAIOR ASTRAL
MAS ROLOU UM BOATO QUE PREOCUPOU O PESSOAL
DIZIAM AS MÁS LÍNGUAS, À BOCA PEQUENA,
QUE O MICHAEL JACKSON TAVA CHEGANDO PRA ROUBAR A CENA
E FOI AÍ QUE A MARINA OUVIU UMA BUZINA
E TODOS FORAM PRA JANELA NA MAIOR ADRENALINA
UMA BRASÍLIA AMARELA DOBRAVA A ESQUINA 
ADIVINHA QUEM ERA?

FESTA DA MÚSICA TUPINIQUIM...  
               

“Obs.: Esta obra de ficção é uma homenagem a todos que estiveram, estão ou estarão um dia na festa da música brasileira”. (GABRIEL, O PENSADOR)


(Este texto foi elaborado, em 2000, durante o curso de Especialização em Linguística Aplicada ao ensino de Língua Materna, UFPR)

terça-feira, 13 de março de 2012

O ciclo do misticismo e do cangaço em Pedra Bonita e Cangaceiros, de José Lins do Rego


Prof.ª Dr. ª Edna Polese

José Lins do Rego, um dos maiores representantes do chamado romance de 30, ficou conhecido como o escritor dos ciclos. Assim, suas obras mais conhecidas reúnem memória e imaginação e apresentam o aspecto social de vertente neorealista, que acaba por destacar personagens marcantes como Carlos de Menino de engenho. Realiza em Pedra Bonita e Cangaceiros o que foi identificado como o Ciclo do cangaço, do misticismo e da seca. Enfatiza o problema do fanatismo religioso no Nordeste e retoma o acontecimento messiânico conhecido como Pedra do Reino ou Reino Encantado, para contar a história dos Vieira, família historicamente envolvida com os acontecimentos marcantes do ano de 1838. Em nota da edição publicada pela José Olympio o autor destaca: “Continua a correr neste Cangaceiros o rio de vida que tem as suas nascentes em meu anterior romance Pedra Bonita. É o sertão dos santos e dos cangaceiros, dos que matam e rezam com a mesma crueza e a mesma humanidade.” O acontecimento histórico funciona como via inspiratória para a criação dos personagens que irão representar a tríade que massacra o sertanejo: a volante, o cangaço e a seca e, por outro lado, a religiosidade representada pela figura do beato peregrino que veio para salvar o povo.
José Lins apresenta a condição social e o perfil do sertanejo. É nessa atmosfera  que o autor retorna ao episódio factual ocorrido cem anos antes. No romance Pedra Bonita, lançado em 1938, a narrativa ocorre num período de tempo de mais ou menos 70 anos após os acontecimentos. A seca, fenômeno natural que expulsa o sertanejo de suas terras, traz a morte e a separação dos entes queridos. O cangaço e a volante são faces opostas da mesma moeda: situação criada pela permanência do patriarcalismo, da violência contra os mais fracos, da má distribuição de riquezas. Os fenômenos sociais – o fanatismo religioso e o cangaço – acabam por se constituírem em tipos de refúgio para o abandono desse povo que percebe nas autoridades locais somente a exploração e a injustiça. O autor declara, em registro resgatado no prefácio da 8º edição, que não pretendia fazer romance histórico e que o acontecimento ocorrido na Pedra Bonita é um assunto subjacente ao romance. Em Cangaceiros, a base para a ação é a mesma, com os mesmos personagens, porém a ênfase recai sobre o fim da família Vieira após um dos filhos tornar-se cangaceiro.
Na narrativa de José Lins do Rego, a apropriação da informação sobre a hierarquia monárquica ocorre a partir da utilização do nome da família Vieira para a construção de seus personagens. A informação de registro histórico não apresenta muitos detalhes sobre a participação da família, mas na obra ficcional de Lins do Rego, será um de seus membros, já que parte da família participava da aglomeração messiânica, que irá levar às autoridades as notícias sobre os fatos ocorridos na comunidade. A narrativa de Pedra Bonita trata da família Vieira, descendentes dos participantes do movimento: “ — Menino, tu me disseste que era filho de Bentão do Araticum. Pois fica sabendo. O homem que correu pra ensinar o caminho à tropa foi um de tua gente. Um Vieira. Tu não tem culpa de nada. Mas Deus não esquece. ( REGO, 1976, p. 119)
A família é composta por Bento Vieira, sua esposa Josefina e os quatro filhos: Deodato, Aparício, Domício e Antonio Bento. Na seca de 1904, a família foi obrigada a partir de suas terras no pequeno vilarejo de Açu. Josefina deixa o filho caçula, Antonio Bento, então com cinco anos, aos cuidados de Padre Amâncio. A velha mãe nutre uma esperança de ver o filho padre, desejo que é compartilhado pelo próprio filho e pelo padre, mas, devido ao estado lastimável da paróquia e da pouca influência de Padre Amâncio, tal propósito torna-se improvável. A vila do Açu é composta de figuras que representam a população local: o padre, as beatas, o juiz, os coronéis. Figuras que aos poucos deixam transparecer um receio sobre Antonio Bento, a cria do padre. Os moradores do Açu atribuem aos mórbidos acontecimentos ocorridos na Pedra Bonita, assim como à interferência dos antepassados da família Vieira, o fato da cidade não ser pródiga. Somente com a leitura avançada é possível apreender o verdadeiro motivo porque a família dos Vieira causa repulsa nas pessoas: um dos antepassados foi o responsável por levar às autoridades as informações sobre os sacrifícios ocorridos entre o grupo fanático, guiando-os para o embate que resultou em mais mortes. A interpretação dessa ação é de que houve traição e como a profecia não se cumpriu, recai sobre a família uma espécie de maldição. Assim, é apresentada a razão para o fato de Aparício tornar-se cangaceiro e para Domício tornar-se um dos líderes fanáticos quando o movimento é posto em voga novamente. Antonio Bento, o caçula, está, a essa altura da narrativa, com dezessete anos e acompanha toda essa situação mergulhado em profundas dúvidas sobre os fatos e suas conseqüências.
Bento, personagem principal do romance de José Lins, descobre, a partir do relato de Zé Pedro, um idoso que vive próximo das formações rochosas e serve como conselheiro espiritual para a gente da redondeza, as obscuras informações sobre a Pedra e o envolvimento de sua família com os acontecimentos. A partir da intervenção do irmão mais velho, Domício, ambos partem em segredo para afinal descobrirem a verdadeira história da Pedra. O relato de velho é breve, confirmando a informação do autor em não pretender fazer romance histórico, utilizando-se do acontecimento histórico para embasar a narrativa. Também não há registro sobre a figura de Dom Sebastião. José Lins utiliza-se da mensagem bíblica do novo testamento, a anunciação da vinda de Jesus Cristo, para explicar a força de conduta para que o movimento tomasse corpo:

Lá vem Batista, com as pedras na mão. Ele vem do Piancó. Ele diz pra todos: “— Ainda não sou eu. Só tenho as três pedras. Uma é o Padre, a outra é o Filho, a outra é o Espírito. Eu venho pra dizer que o Filho não tarda. Ele se chama Ferreira, vem no corpo de Antônio Ferreira, vencer os demônios, abrir a porta dos homens que não querem abrir pra os pobres, botar os pobres no lugar dos ricos e os ricos no lugar dos pobres” (REGO, 1976, p. 117)

A cena incorpora os elementos do messianismo: a vinda de um salvador, a promoção de uma vida digna aos que sofrem, a inversão social. João Ferreira, na narrativa de Lins do Rego, representa a figura de preenchimento anunciada por Cristo. Tal caracterização amplia o imaginário sobre a questão dos movimentos messiânicos. Ao fazer a referência bíblica, José Lins apresenta o fundamento cristão da segunda vinda de Cristo, no qual é possível estabelecer uma visão voltada à realidade social de forma a legitimar o traço religioso profundamente enraizado na cultura local, independente da formação de um grupo fanático. A obra de Lins do Rego apresenta a idéia geral de causa e conseqüência de determinada situação social que pode levar ao caminho do cangaço ou do fanatismo. Bentinho experimenta o processo de formação perante situações que vêm ao encontro de sua vida até então simplória e previsível. Tais situações o obrigam a escolher caminhos ou presenciar outras escolhas que reconhece como inexoráveis. Ao final da narrativa, essa imagem fica bem clara, pois diante de duas situações difíceis, a iminente morte de padre Amâncio e a perseguição que a família sofre com a volante, Bentinho parte do Açu rumo a um desses caminhos: buscar o padre de Dores para ministrar a confissão ao moribundo, ou seguir para a Pedra, onde agora sua família buscou refúgio.
O padrinho morria e desejava o consolo de uma confissão, de um ajuste de contas. O Padre Amâncio queria fazer as suas contas, dizer o  que devia a Deus, o que ficara restando, o que deixara de fazer. Aquilo não podia ser. Ele era um santo. Foi quando Bento chegou na encruzilhada que dava para Dores e para a Pedra Bonita. E o tiroteio voltou à sua cabeça, nítido como se ele estivesse olhando de perto. (REGO, 1976, p. 218)

                  Em Cangaceiros a narrativa foca a ação do grupo formado pelo irmão de Bento, Aparício, que assumiu o cangaço após um crime cometido na pequena cidade próxima ao Araticum, terra de seus pais. Sabendo que a justiça não beneficiaria gente humilde, a única saída é o cangaço. A narrativa não relata diretamente os acontecimentos ocorridos no grupo de cangaceiros liderado por Aparício. As ações chegam ao conhecimento de Bentinho e sua mãe, agora refugiados na fazenda do Capitão Custódio, após o segundo massacre à Pedra. Angústia e desolação são os tons que acompanham a narrativa. Os coiteiros e mensageiros simpatizantes dos cangaceiros trazem as notícias do mundo exterior e é dessa maneira que o leitor tem acesso aos acontecimentos. Na narrativa de Cangaceiros o “coito”[1] de Aparício e seu bando pertence ao Capitão Custódio dos Santos. É um local denominado Roqueira. O dono é um homem próspero, mas profundamente magoado com a situação de um mandatário local que assassinou seu filho e a família não teve como vingar-se. Sua esposa Doninha morre de desgosto. Na figura do cangaceiro é que o Capitão Custódio deposita a esperança de ver Cazuza Leutério, o mandatário do crime contra seu filho, vingado pelo cangaço . O tipo de situação que envolve Capitão Custódio e Aparício é uma das facetas que explica a longa permanência do cangaço nos sertões:

O problema dos coiteiros pela ótica policial, era uma engrenagem imensa e complicada; observava-se que qualquer pessoa do sertão era parente e compadre de cangaceiro, amigo ou protetor, de fato ou em potencial.
Existiam dois tipos de coiteiros. O primeiro era constituído pelos fazendeiros, comerciantes e chefes políticos ricos que por necessidade ajudavam Lampião.(...) O outro grupo de coiteiros era constituído de vaqueiros, moradores do campo, das fazendas e por outras pessoas que tinham pouca influência. Entre eles estavam os donos de pequenas e médias propriedades e os seus agregados, lojistas e negociantes dos povoados e arruados. Esse outro grupo não tinha grande proteção e sofria mais amiúde da força policial, principalmente quando se desconfiava de que os coiteiros estavam dando informações inexatas quanto à pista dos cangaceiros. (NASCIMENTO, 1998, p. 206)

                  O grupo de personagens que surge na narrativa de Lins do Rego pertence a essa engrenagem: Bento e sua mãe Josefina, parentes de Aparício, sofrem desde a narrativa de Pedra Bonita as influências de ter o parente tão próximo no cangaço. Capitão Custódio, que protege Aparício por interesses pessoais, representa o médio proprietário que tem pouca proteção policial. Os demais moradores da Roqueira, de uma maneira ou outra, sofrem com a guerra entre o cangaço e a força policial. Esse modo de narrar segue a maneira como a população acessou e construiu a imagem de Lampião, o mais conhecido dos bandoleiros. Informações desencontradas, notícias falsas e exageros nos relatos sobre a ação dos cangaceiros fortaleceram o imaginário sobre essas figuras. Outro meio utilizado por Lins do Rego e que tem fonte no imaginário do sertão nordestino é a literatura popular, ou a literatura de cordel. Dioclécio, cantador que aparece desde a primeira parte do romance Pedra Bonita, surge na narrativa de Cangaceiros como a voz que leva a vida de Aparício e de sua família para os versos e a viola. Ariano Suassuna faz um comentário sobre a obra de Lins do Rego analisando Cangaceiros a partir da continuidade de Pedra Bonita como uma “Gesta de Aparício”, o terrível cangaceiro que espalhará o terror em todas as nuances e camadas da comunidade local. Amplamente inspirado em cangaceiros famosos que assolaram o sertão nordestino a partir do final do século XIX, Aparício é construído a partir das figuras de Jesuíno Brilhante, Antonio Silvino e Lampião, certamente o mais famoso deles.

NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. São Paulo: Ícone, 1998.

REGO, José Lins do. Pedra bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
_____. Cangaceiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.



[1] No texto de José Lins do Rego surge o substantivo “coito” no sentido de acoitar, verbo que significa dar couto ou guarida, refugiar-se. No texto, o autor utiliza-se de uma corruptela do termo: “Bentinho procurou saber do irmão. O Beiço Lascado estivera com ele no coito do Coronel Ramalho.” (REGO, 1976, p. 119.) “A gente ficava parado e ninguém podia sair do coito” (REGO, 1976, p. 121)

quarta-feira, 7 de março de 2012

“OS MORTOS”: O CONTO DE JOYCE E O FILME DE HUSTON



Brunilda T. REICHMANN, PhD

Resumo: Utilizando as teorias de adaptação fílmica de Robert Stam, Brian McFarlane, Linda Hutcheon, entre outros, este artigo trabalha as transferências, adaptações, interpolações utilizadas por John Huston em sua adaptação fílmica do conto “Os mortos” de James Joyce, intitulada “Os vivos e os mortos”, em português. Tanto o texto ficcional quanto o fílmico retrata relações sociais e íntimas da sociedade irlandesa do início do século XX. Tendo como pano de fundo o severo inverno em Dublin de 1904, na primeira parte da narrativa (ficcional e fílmica) “participamos” do evento social promovido pelas irmãs Morkan e pela sobrinha Mary Jane, na passagem do ano. Huston intensifica a dramaticidade do evento ao incluir no filme um novo personagem, Sr. Grace, que declama um poema trágico traduzido do irlandês por Lady Gregory, enriquecendo assim ainda mais o caráter multimidial do filme. Na segunda parte, a narrativa volta-se para o “desencontro emocional” do casal Conroy, Gabriel e Gretta, sobrinhos das irmãs Morkan. O crescente afastamento e nostalgia de Gretta vão de encontro ao crescente desejo e expectativas do marido, que acaba por ouvir da esposa a revelação de um acontecimento trágico de sua juventude.

Palavras-chave: Narrativa ficcional e adaptação fílmica.