Prof.ª Dr.ª Mail Marques Azevedo (Uniandrade).
Participarei de 2 a 4 de maio do Colóquio Internacional Revisitar o Mito/ Recycling Myths, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, organizado em conjunto pelos Centros de Estudos Anglísticos e de Estudos Clássicos da instituição.
Os tópicos preferenciais de intervenção do evento incluem desde a origem dos mitos até sua relação com a ciência, a ética, a política, a psicanálise, a religião e a filosofia, além das relações interartes e, no campo especificamente literário, os mitos e os contos populares e de fadas, questões de gênero, a recepção dos mitos, e o mito no pós-modernismo. O elevado número de inscrições, que traduz o interesse despertado pelo amplo espectro da temática. levou os organizadores a estender a duração do evento.
Desprezado pela historiografia positivista, o mito passa a ser revalorizado pelo movimento romântico do século XIX, como “construção simbólica portadora de um sentido e de um ancoramento afetivo no real.” Assim, é objetivo do colóquio verificar como “os mitos se afirmam e se recriam, inquirir acerca dos múltiplos laços que, individualmente e politicamente, os homens e as sociedades estabelecem com os mitos” (Citado do material eletrônico de divulgação).
Para tema do meu trabalho, escolhi a sobrevivência de estruturas míticas, em ícones dos grupos sociais no século XXI criados pela mass media, que cumprem ainda hoje sua função de narrativas de valor paradigmático para as atividades humanas, e de lembrete constante da existência das realidades absolutas (ELIADE, 1972). Inicialmente, observa-se como as narrativas míticas que, gradativamente, perdem o caráter sagrado de explicação verdadeira para dar origem a formas convencionais como os contos folclóricos, de fadas e histórias de terror, representam, nesta última forma, uma tendência atual acentuada.
É de conhecimento comum que histórias sobre monstros, bruxos, lobisomens e outros seres sobrenaturais estão na ordem do dia, um veio explorado por uma sucessão de autores, elevados instantaneamente à categoria de best-sellers. Desde que J.K. Rawlings publicou, em 1997, Harry Potter e a pedra filosofal, o primeiro de uma série de oito volumes, cujas vendas atingiram a espantosa cifra de um bilhão de exemplares, observa-se uma intensificação do gosto popular por narrativas de terror, apropriadas por diferentes mídias, especialmente pelo cinema.
Na versão americana do sobrenatural para adolescentes, que não se fez esperar, a série Crepúsculo, igualmente transformada em filme, a autora Stephenie Meyer cria uma fantástica história de amor entre uma jovem, Bella Swan, e um vampiro, Edward Cullen, rapaz de bela aparência que, apesar do amor pela heroína, não consegue superar a atração atávica por sangue. O herói-vampiro cede a seus instintos apenas no dénoument do romance, quando a heroína faz a opção pelo tenebroso mundo do amado.
Na opinião da ala jovem feminina de minha família aos dezesseis anos, leitora ávida da série Crepúsculo e espectadora fiel dos filmes o melhor mesmo é o livro que está lendo agora, Jogos vorazes, da norte-americana Suzanne Collins. Ao ler a crítica do filme, baseado no romance, ambos já lançados no Brasil, senti-me de início repelida pela temática central. Em um mundo pós-apocalíptico, um estado autoritário domina os cidadãos pelo terror: a cada ano, as doze regiões que constituem o país devem enviar dois adolescentes, escolhidos por sorteio, para um combate mortal, no centro de controle absoluto, a nefanda Capital do país. Os vinte e quatro adolescentes devem guerrear entre si, até que apenas um deles permaneça vivo.
Ao ler as declarações da autora sobre a inspiração da trama no mito grego de Teseu e o Minotauro, que admira desde a infância, percebe-se a diferença do impacto provocado por uma narrativa da mitologia grega, a milênios de distância, e sua transformação em um romance atual (embora situado em um vago tempo futuro) e nas imagens muito presentes da projeção cinematográfica. A referência ao mito lança nova luz sobre os Jogos vorazes .É evidente que o caráter de narrativa exemplar desaparece na versão reciclada do mito grego, que não provoca o efeito esperado de respeito a hierarquias nem de temor do castigo. Revela-se, no entanto, uma força de atração poderosa para os espíritos jovens que nela encontram algum tipo de resposta para as questões essenciais da vida humana: por que viver e por que morrer. O emprego do mito apela para a herança atávica de todo ser humano, o inconsciente coletivo da espécie, na nomenclatura de Jung.
Embora o mito tenha perdido o caráter de explicação primordial, está cada vez mais enraizado em nossa tradição cultural e em toda a literatura mundial. A esse respeito, W.R. Irwin enfatiza a busca empreendida pelo romancista moderno por uma mitologia adequada, “utilizando mitologias herdadas, ou criando suas próprias mitologias, por vezes retrabalhando o material da tradição” (IRWIN, 1976, p. 159-60). Possivelmente Irwin se refere a praticantes da “alta literatura”, mas suas considerações se aplicam aos exemplos da literatura de caráter popular discutidos acima.
Tanto Harry Potter, como os protagonistas de Crepúsculo e Jogos vorazes saem vitoriosos das batalhas que devem empreender contra forças superiores, sobrenaturais ou não. Esta, segundo Eric Rabkin, é uma das funções dos mundos fantásticos: oferecer segurança e estabilidade como alternativas ao mundo real de flutuação e crescimento. As narrativas fantásticas sempre terminam por assegurar a ordem, mostrando que, a despeito de monstros e dragões, ou dos elementos apavorantes dos contos de terror, o mundo da fantasia é um mundo seguro. E é este mundo seguro que minha jovem leitora e seus pares buscam nas versões recicladas do mito na ficção atual.
REFERÊNCIAS
ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
IRWIN, W.E. The Game of the Impossible. Urbana: Un. of Illinois Press, 1976.
RABKIN, E. The Fantastic in Literature. Princeton: Princeton Un. Press, 1977.