segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O PAGADOR DE PROMESSAS NA LITERATURA E NO CINEMA: PELA DIVERSIDADE E PELO ORGULHO DAS RAÇAS


Prof.ª Dr.ª Verônica Daniel Kobs (UNIANDRADE)

O pagador de promessas, de Dias Gomes, celebra a diversidade cultural, com o sincretismo religioso. Essa característica do texto literário é resultado da assunção e da popularização dos traços de origem africana, na identidade cultural brasileira. Em 1962, a peça foi adaptada para o cinema. O filme, dirigido por Anselmo Duarte, conquistou inúmeros prêmios e contou com Glória Menezes (Rosa) e Leonardo Vilar (Zé do Burro) nos papéis principais. Exemplo de adaptação extremamente bem sucedida, o filme recupera o texto literário quase integralmente e reforça aspectos que, na peça, são apresentados mais ligeiramente. As mudanças feitas no filme levam em conta critérios distintos, dando espaço à condensação, por exemplo, em determinados momentos, e, em outros, privilegiando a ampliação.
Na peça, logo no início, Rosa e Zé do Burro chegam à Igreja de Santa Bárbara, destino de Zé, que tinha feito a Iansan a promessa de levar uma cruz à igreja que levava o nome da santa. Porém, o padre entende que, como a promessa tinha sido feita em um terreiro de candomblé, era para lá que Zé deveria levar a cruz. Além disso, o fato de Zé fazer uma promessa que o obrigou a passar pelo mesmo sofrimento de Cristo é considerado uma heresia.
O filme, diferentemente do texto, tem início no terreiro, mostrando Zé desde o momento em que fez sua promessa. Depois disso, enquanto aparece o letreiro, é mostrada a peregrinação do personagem, que passa por lugares distintos, à noite e durante o dia, o que dá maior dimensão a sua fé e também à tragédia desencadeada pela recusa do padre em aceitar que Zé entre na igreja com a cruz. Esse enaltecimento da fé e da tragédia, consequentemente, seria a primeira função do começo do filme, que ainda cumpre outros três papéis importantes: um deles é a contextualização, para que o espectador compreenda melhor o que está acontecendo e por quê; o outro é retratar uma parte da cultura brasileira, fortemente influenciada pela africana, no momento em que são mostrados rituais comuns em terreiros; e o terceiro, como menciona Sábato Magaldi, é influenciar o espectador através do apelo afetivo da cena, já que a ação é apresentada pela perspectiva de Zé. 
Também com o objetivo de retratar aspectos culturais do Brasil e baianos, especificamente, o diretor do filme enfatiza algumas situações presentes na peça, bem como insere algumas cenas que levam adiante o que o texto apenas sugere ou que potencializam o aspecto religioso da obra. O primeiro exemplo disso são as longas cenas que mostram a procissão comemorativa do dia de Santa Bárbara, festa que demonstra muito bem a presença do sincretismo. Pode-se aventar a hipótese de que a escolha da Bahia como cenário para representar o Brasil aconteceu justamente pelo fato de o estado ser o que mais carrega a pluralidade como traço constitutivo:


Na Bahia, o sincretismo religioso sempre foi um assunto delicado para as autoridades eclesiásticas. É uma herança antiga, ainda do tempo da escravidão. Proibidos pelos senhores de engenho de praticar o candomblé, os escravos desenvolveram uma forma de religiosidade na qual os símbolos e rituais afros se misturaram aos católicos, e vice-versa. Como resultado, hoje é comum encontrar […] santos com nomes de orixás, da mesma forma que o atabaque e o berimbau se incorporaram às festividades católicas. (CAMPOS, 2008, p. 1).


Exatamente por isso a religiosidade foi ampliada, no filme, dando mais espaço à polêmica causada pelo sincretismo, a qual é bem evidenciada não só pelos embates frequentes entre o padre e Zé do Burro, mas também por uma cena com os membros do alto escalão da Igreja, reunidos para discutirem a repercussão da promessa feita por Zé e sua insistência em entrar na igreja. No texto de Dias Gomes, isso não aparece. Ocorre apenas a visita do Monsenhor ao padre, sem que se revele ao leitor o tema da conversa que eles tiveram.

(Parte do trabalho apresentado pela Prof. Dra. Verônica Daniel Kobs, no V SELLF, na Fafipar, no dia 20 de agosto de 2011.)

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