segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A mulher sem túmulo, de Nilze Costa e Silva


Prof.ª Dr.ª Edna da Silva Polese

A história religiosa de Juazeiro do Ceará parece despertar novamente. A vida de Padre Cícero continua em voga. Um recente e elogiada biografia, da autoria de Lira Neto, autor premiado, detentor do prêmio Jabuti na categoria biografia em 2007, foi publicada em 2009. Outras obras vão surgindo sobre um assunto que parecia pertencer a um passado já sem foco de interesse. Mas, como diria Shakespeare “Atiramos o passado ao abismo, mas não nos inclinamos para ver se está bem morto.” O interesse de autoridades locais e desafetos do padre cuidou para abafar o caso mais espantoso ocorrido em Juazeiro: os milagres da Beata Maria de Araújo. Maria de Araújo fazia parte do cortejo de inúmeras beatas que seguiam o padre Cícero. O que fez que essa insignificante e humilde mulher se destacasse na história local e preenchesse o imaginário da população movida pela fé foi o caso do milagre da hóstia. Quando tinha 26 anos a beata comungou e a hóstia sangrou em sua boca.  O caso teve uma repercussão bombástica sobre o Juazeiro, causando, entre outras coisas, a intervenção do bispado e do Vaticano proibindo o padre Cícero de continuar com suas funções sacerdotais durante anos e imprimindo o a marca de fraude ao caso da beata.
Em A mulher sem túmulo, da autoria de Nilze Costa e Silva, há a tentativa de se buscar a voz dessa mulher. Negra, pobre, analfabeta, doente, Maria de Araújo reúne em si várias misérias do povo esquecido do Nordeste. Numa época como a que viveu essa marca era ainda mais evidente. Desde cedo, Maria de Araújo vivera experiências espirituais que não compreendia. Logo que teve contato com padre Cícero, percebeu ali um mentor para toda a vida, pois as vozes que ouvia desde criança, agora pareciam ter sentido. Maria de Araújo compreende que tem uma missão e é capaz de sentir coisas inexplicáveis e incompreensíveis para outras pessoas: “Com tão pouca idade, compreendia as coisas divinas e agora, verdadeiramente tinha Cristo no coração. Iria se dedicar à vida religiosa para sempre.” (p. 46). A autora faz uma viagem em torno do tema sob o olhar da atualidade vislumbrando que não basta as autoridades decretarem leis e proibições, pois no fim, é o povo que elege seus santos.
A obra está dividida em dois momentos. Na primeira, retoma a história de Maria de Araújo desde criança até a sua morte. Nesse ponto, a narrativa segue outro rumo, apresentando algumas vozes que acompanharam a trajetória de Maria de Araújo, como o médico responsável em avaliar se ocorria fraude no momento do sangramento da hóstia. O médico conta a experiência para o único filho e o incube a levar um rosário para deixar no túmulo de Maria de Araújo. O personagem segue nessa missão, mas ela se torna infrutífera. Ao chegar ao vilarejo, que agora se tornara uma cidade muito agitada, trinta após os acontecimentos que cercaram o suposto milagre, Jocélio Madeira descobre que não existe mais o túmulo de Maria de Araújo. As autoridades eclesiásticas tomaram providências mesmo depois da morte da beata. Fizeram questão de destruir qualquer vestígio que lembrasse a presença da beata. O título da obra nasce dessa providência tomada pelas autoridades. O personagem ficcional adentra esse estranho mundo de fé e milagre, mas sai de Juazeiro sem cumprir a missão dada pelo pai. Afinal, onde entregaria o rosário, já que o túmulo não existira mais? Ao conversar com a dona da mesma pensão em que ficara o pai, à época dos milagres, Jocélio pergunta à dona da pensão, Dona Luísa Batista, sobre o túmulo da beata: “— Pobrezinha. Muita gente ficou triste e revoltada com a retirada da santa. A Igreja não queria, mas a gente rezava no túmulo  dela. Agora, ficou apenas na saudade. Tudo dela foi queimado, as imagens, os santinhos... Com se ela nunca tivesse existido. Como é que pode, uma mulher sem túmulo? Uma santa?” (p. 232) Da história oficial, apresentada em obras de cunho historiográfico e social, fica a ideia de que Maria de Araújo faz parte desse rol de santos populares cuja Igreja oficial faz questão de ocultar. Maria de Araújo carrega ainda sobre si várias características que facilitam essa mentalidade: pobre, analfabeta, simplória, humilde, negra, oriunda dos sertões esquecidos das autoridades. Como a igreja iria reconhecê-la como protagonista de um milagre? A arrogância da Igreja oficial à época foi tamanha que o bispo declarou que Deus não sairia da Europa para fazer milagres no agreste.
Aos poucos, a voz de Maria de Araújo faz-se presente. Mesmo a figura do padre Cícero, que nunca deixou de ser famosa, sofre novas interpretações. No trato ficcional, essa tentativa ocorre a partir de uma cuidadosa pesquisa, mas principalmente a de perceber a beleza dessa vida e a sensibilidade dessa figura aparentemente sem ambições pessoais que, sem planejar, fez parte de um período complexo na história do Brasil. É ainda perceptível a importância dessa voz que ressoa como figura de grata importância para a pesquisa sobre a história da religiosidade popular no Brasil, daquela que foge aos tratos, cuidados e domínios da Igreja oficial. Daquela que perdura mesmo com todas as mudanças sentidas nos últimos tempos: o crescimento da fatia protestante; os escândalos que cercam a igreja católica; a diminuição do número de fiéis. A Igreja agora se volta para essa história singular que cerca a cidade. A documentação acerca da beatificação do padre está novamente em foco no Vaticano. Ao retomar esses acontecimentos, dá-se as reverberações de vozes de protagonistas, como Maria de Araújo, voz de minoria nesse grupo que transformou para sempre a vida em Juazeiro do Ceará. A historiografia revisita a vida de Maria de Araújo como uma figura incompreendida pela Igreja. O preenchimento ficcional tenta apreender a humanidade de Maria de Araújo, sua sensibilidade, fé e bondade. Mais que isso, a repercussão no imaginário popular, que não necessita do parecer oficial para condecorar os seus santos.

SILVA, Nilze Costa e. A mulher sem túmulo. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2010.

NETO, Lira. Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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