Prof.ª Dr.ª Eunice de Morais
“(...) o pós-moderno é um empreendimento cultural contraditório, altamente envolvido naquilo que procura contestar. Ele usa e abusa das próprias estruturas e valores que desaprova.” (Linda Hutcheon) *
É neste sentido do desafio a convenções que este texto se propõe a analisar as produções recentes do rap ou hip hop no Brasil. Teremos por orientação a obra de Richard Shusterman vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular (1998), que ao examinar a estética do rap considera-o uma
arte popular pós-moderna que desafia algumas das convenções estéticas mais incutidas que pertencem não somente ao modernismo como estilo artístico e como ideologia, mas à doutrina filosófica da modernidade e à diferenciação aguda entre as esferas culturais [3].
Apesar de desafiar tais convenções o rap satisfaz, segundo Shusterman, as normas estabelecidas para a legitimidade estética, geralmente negada à arte popular. Nosso objetivo, portanto, será mostrar como o rap do Brasil, com suas características próprias aliadas às raízes culturais de quem não apenas o compõe, mas se compõe dele, se insere neste contexto caracterizado por Shusterman da arte pós-moderna.
Shusterman, assim como Linda Hutcheon e F. Jameson, considera que mesmo sendo o pós-modernismo “um fenômeno complexo e contestado, cuja estética resiste a toda definição clara e consensual” [4] é possível reconhecer nele traços estilísticos e temas próprios, o que não significa dizer que estes traços e temas não estejam presentes, com certa nuança, em obras de arte modernas. É a diferença dentro da semelhança. Dentre as características da obra pós-moderna citadas por Shusterman estão:
A tendência mais para uma apropriação reciclada do que para uma criação original única, a mistura eclética de estilos, a adesão entusiástica à nova tecnologia e à cultura de massa, o desafio das noções modernistas de autonomia estética e pureza artística, a ênfase colocada sobre a localização espacial e temporal mais do que sobre o universal ou o eterno.[5]
Essas características, doravante, darão o direcionamento de nossa análise sobre um conjunto selecionado de composições em que estão mais claramente apresentados os recursos estéticos e estilísticos citados na análise do autor americano.
A apropriação reciclada
Nunca as obras de arte foram reprodutíveis tecnicamente, em tal escala e amplitude, como em nossos dias. (Walter Benjamin) [6]
A primeira característica citada pelo autor revela a opção pela não utilização do termo “pastiche” apresentado por Jameson [7], por outro lado também não utiliza a definição de “paródia” apresentada por Hutcheon. Quando Shusterman opta pela idéia de uma “apropriação reciclada” demonstra que há razões e critérios na escolha do elemento e do modo como ele será apropriado. Há uma preocupação por parte dos rappers com a seleção dos recursos discursivos e técnicos a serem apropriados. Não há, portanto, a “canibalização aleatória” (grifo meu) como afirma Jameson. “A música é composta pela seleção e combinação de partes de faixas já gravadas, a fim de produzir uma ‘nova’ música.” [8]
O status adquirido pelo rapper é derivado de seu poder verbal, porém há também uma séria preocupação com o desempenho do vocalista, pois “a voz é o único instrumento verdadeiramente inimitável” [9]. A habilidade verbal é ao mesmo tempo característica e tema do rap e a confirmação disso está na composição de Fúria verbal de Thaíde e Dj Hum apresentado no álbum Assim caminha a humanidade (2000). A letra composta por Thaíde traz o sentido pedagógico da produção numa construção metapoética, o que demonstra uma clara e forte preocupação com o aspecto sonoro e poético da letra que não está alienada da qualidade conteudística.
A construção dos meus versos tira a dúvida.
A segunda rima com a terceira e a primeira com a última
Exemplo: use bem o papel e caneta
Olhe pra mim, pequeno aprendiz
Aqui é muita treta
Se você não entendeu, tudo bem, não tem complexo
É só tomar cuidado pra não escrever coisa sem nexo
Como eu tenho escutado por aí. (Thaíde).
A composição segue desafiando os falsos rappers, aqueles que se dizem fazer parte de um “movimento Hip Hop” que segundo Thaíde não existe (Movimento rap não existe / infelizmente muita gente insiste em dizer que sim), segundo Xis, revelação do rap no ano de 2001, o que existe é a “cultura Hip Hop”. Tudo isso vem confirmar que há uma auto-legitimação do Hip Hop como arte e não como um mero movimento amparado pelo modismo. O desafio que se faz quanto à produção de rimas é um desafio muito mais abrangente do que pode parecer.
A rima, apesar de ser o recurso poético mais exigido e exaltado nas produções de rap não é o único, há aliterações, marcações rítmicas dos versos, ambigüidades, metáforas, etc... E há nestas composições uma auto-reflexão sobre a construção poética e a revelação de uma consciência artística que reivindica sua força e seu talento superior, mostrando que há uma tradição artística como no trecho:
Lendário como Nino Brown, Nelson triunfo, Dj Hum
Orgulho literário nascido na zona sul
(...)
Zulu é minha doutrina, sou parte integrante da arte.”
E que esta tradição está centrada num espaço social que é a periferia
... pregamos a união entre irmãos e irmãs
mesmo que o negócio deles seja cavaco e tantãs
Periferia maioria: esse é o nosso lema
Um salve para casa de Hip Hop Canhema, Diadema
Onde comunidade aprende o que é arte de verdade.
Segundo Shusterman, a habilidade verbal é muito aplicada no gueto africano urbano e pesquisas antropológicas mostram que afirmar uma posição superior pelo poder verbal é uma tradição negra bastante enraizada. A incapacidade de reconhecer estruturas significativas e convenções estilísticas na criação verbal do inglês afro-americano fez com que se visse as letras de rap como superficiais, monótonas e estúpidas, adjetivos estes que poderiam ser facilmente derrubados por uma leitura mais atenta e desimpedida que revelaria os níveis diversos de significação, ambigüidade e intertextualidade. Do mesmo modo, no Brasil há o preconceito lingüístico com relação às produções do rap, por ser composto em uma linguagem socialmente estigmatizada, porém no rap esta linguagem é o que define sua identidade cultural. O rapper Xis em Us mano e as mina, através desta linguagem imediatamente relacionada à ignorância vem justamente marcar o lugar de produção e de origem do rap que é a periferia pobre e discriminada. Demonstra que a música está diretamente relacionada com a condição social. Ou seja, a linguagem padrão é vista como representante da classe dominante e discriminadora e por isso não é apropriada para o contexto representado. Ela representa justamente aquilo por que se luta contra. A linguagem é também uma forma de contestação. A música aparentemente superficial, monótona e estúpida é um instrumento de difusão de idéias e conceitos culturais durante muito tempo oprimidos por uma cultura dominante que agora tem seu posicionamento central questionado.
Shusterman denomina os Dj’s de rap “canibais da selva urbana”, pois recuperam os ritmos da selva aos quais se remete o funk e são retomados pelo rock e pelo disco. Há, portanto, uma herança africana, apesar de ter nascido em plena era disco no meio dos anos 70. “O rap retoma elementos acústicos concretos, performances pré-gravadas desses padrões musicais.”[10] A habilidade criativa do rapper se restringe à manipulação de equipamentos de gravação. É uma criação sobre o elemento tecnológico através da técnica de montagem, mas vai além desta montagem quando se considera a criação verbal.
* Hutcheon, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Rio de janeiro: Imago Editora. 1987. p. 142.
[1] Idem, p. 84
[2] Hutcheon, p.85.
[3] Shusterman, R. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Ed. 34, 1998. p. 144.
[4] Idem, p. 145.
[5] Idem, ibidem.
[6] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política.5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 168.
[7] Shusterman freqüentemente assinala em notas que utiliza como base teórica a reflexão sobre o pós-modernismo de F. Jameson apresentada em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.(São Paulo: Ática. 1996)
[8] SHUSTERMAN, p. 145.
[9] O produtor de rap Tito em artigo publicado na página www.bocadaforte-versão 2001_arquivos\materiais1.htm apresenta dicas para se produzir um bom hip hop economizando o máximo de dinheiro.
[10] SHUSTERMAN, P. 147.