Em 1997, veio a público o filme Baile perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. A produção foi a grande vencedora do Festival de Cinema de Brasília, conquistando, inclusive, o prêmio de melhor filme. A história contada não é a de Lampião, mas a de Benjamin Abrahão Botto, libanês que se naturalizou brasileiro, depois de mudar-se definitivamente para cá, para fugir da convocação para lutar na Primeira Guerra Mundial. No entanto, na trajetória desse personagem havia vários pontos que o relacionavam a Lampião e a seu bando, além de constituírem um rico material para um roteiro cinematográfico.
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A princípio, qualquer tipo de registro histórico parece ser relacionado mais à permanência do que à mudança, afinal, depois de fazer parte da História, o fato fica ali, imóvel, até que surja alguém que retome aquele fato histórico e motive novas percepções, novas formas de leitura e compreensão. Benjamin Abrahão Botto conseguiu seu intento. Ele registrou um pedaço da História de Lampião e seu bando, que mudaram o mundo de muitos, e, muitos anos depois, ajudou Paulo Caldas e Lírio Ferreira a mudar o mundo construído em torno do mito do rei do cangaço. Em Baile perfumado, Lampião não deixa de ser mostrado como mito. Ele apenas tem enfatizado seu outro lado. O mesmo jogo de luz e sombra perpassa o personagem do fotógrafo. Comumente, Abrahão é lembrado pelo material iconográfico riquíssimo que produziu, mas pouco se fala sobre sua luta para pôr em prática seu projeto artístico-histórico. Todos comentam o que ele fez, mas, afinal, quem foi ele mesmo?
Baile perfumado sugere uma nova perspectiva, para desinvestir o mito da autoridade que, habitualmente, esse carrega, a fim de possibilitar uma revisão. No entanto, essa mudança só é possível, pela estrutura escolhida para a apresentação da história. Nesse plano mais formal, destaquem-se o modo indireto de reacender a discussão sobre o papel do cangaço, na sociedade brasileira, e a associação entre imagem e som, inclusive com o privilégio da música, detalhe que não pode passar despercebido, já que a trilha sonora inclui a participação dos principais nomes do movimento mangue beat.
Na primeira cena de Baile perfumado em que aparecem Lampião e seu bando, o som de Chico Science é indício valioso do que está por vir. A “batida” do mangue dialoga com a filosofia do cangaço, no que se refere à luta social, contra a miséria e pela esperança de mudança, e dialoga com o filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, pela valorização do aspecto regional e da cultura de raiz, para “modernizar o passado”, e pela fusão de estilos e elementos, que, no filme, fica muito bem representada pela alternância constante entre passado e presente. O híbrido e o novo são celebrados, mas sem esquecer o tradicional. Dentre os nomes que compõem a trilha sonora de Baile perfumado, Fred Zero Quatro, com a banda Mundo Livre S/A, e Chico Science, à frente da Nação Zumbi, estabeleceram um novo conceito pop.
A relação entre modernidade e tradição foi explicitada, através do símbolo do movimento: uma antena parabólica enterrada na lama dos manguezais. Lançado em 1992, com o manifesto Caranguejos com cérebro, o mangue beat exigia “a percepção da diversidade cultural existente” e privilegiava “a fusão de ritmos, maracatus, repentes e cantigas de roda com rock, rap e dance music”. (LEAL, 2006, p. 3). Até aqui, há provas suficientes da convergência entre Baile perfumado e o movimento pernambucano dos anos 90, mas a prova irrefutável associa-se mais ao tema que à estrutura:
A cena mangue traz também um resgate de manifestações folclóricas de Pernambuco e nordestinas, tomando como referências figuras históricas como Zumbi, Lampião e Antônio Conselheiro, numa clara tentativa de resgate da identidade histórica. (LEAL, 2006, p. 3).
Aí aparece Lampião, e não à toa, pois, se o objetivo dos “caranguejos com cérebro” era fazer revolução, nada melhor do que evocar alguns dos ícones revolucionários importantes de nossa História. Aliás, várias retomadas como essa, ao longo de décadas, acabaram contribuindo para a construção da heroicidade de alguns personagens históricos pelo movimento mangue beat. Ressalte-se que o apelo popular permitiu a reescrita da História, afinal, de “subversivos”, “revoltosos” ou “marginais”, todos os exemplos aqui citados foram conquistando, aos poucos, o reconhecimento oficial. Dessa forma, hoje, os “heróis” do passado interferem no presente e, em troca, o presente lança um novo olhar sobre o passado, o que equivale, respectivamente, a outro movimento de reciprocidade: “da lama ao caos” e “do caos à lama”.
(Trecho do artigo publicado pela Prof. Verônica Daniel Kobs, na revista Todas as musas, em julho de 2010. Para ler o texto na íntegra, acesse: http://www.todasasmusas.org/03Veronica_Daniel.pdf)
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