No ensaio intitulado “A autobiografia dos que não escrevem”, Philippe Lejeune flexibiliza os termos de sua definição de autobiografia, ao discutir como uma nova produção “autobiográfica” os relatos de vida coletados pelo gravador e publicados em formato de livro. Concede-se, assim, o direito de transformar em escrita e divulgar ao público a palavra dada a pessoas que não têm o privilégio de escrever e publicar a narrativa da própria vida. É o caso de Rigoberta Menchú, ativista indígena guatemalteca, cujo testemunho à antropóloga venezuelana, Elizabeth Burgos-Debray publicado como Meu nome é Rigoberta Menchú e assim me nasceu a consciência (1983), valeu-lhe o Prêmio Nobel da Paz de 1992. Narrativas pessoais como essa se tornaram um dos veículos mais potentes na luta pelos direitos humanos em todo o mundo.
Human Rights and Narrated Lives (Direitos humanos e vidas narradas) foi o tema do seminário ministrado pela Dra. Sidonie Smith, da Universidade de Michigan, no III Congresso Internacional da ABRAPUI na Universidade Federal de Santa Catarina, de seis a nove de maio. Transcrevemos abaixo, traduzida e editada, a proposta do seminário apresentada aos participantes, por julgá-la relevante para os interessados nos estudos dos gêneros autobiográficos.
Sidonie Smith (Universidade de Michigan) – Direitos humanos e vidas narradas
Com o apelo à empatia do leitor, narrativas de vida que fazem reivindicações contra agentes de um estado ou de facções políticas tornaram-se um poderoso instrumento para o avanço da luta mundial pelos direitos humanos. Servem a múltiplos propósitos: relatar injúrias, confrontar as conseqüências de traumas sofridos, identificar culpados, exigir desculpas, homenagear as vítimas mortas ou silenciadas, convocar à ação e levantar fundos para causas ativistas e para ONGs.
Nas três últimas décadas vários tipos de narrativas circulam em nível global. Os gêneros testemunhais incluem narrativas de genocídios tais como as do holocausto e dos assassinatos em Ruanda; histórias de exploração e traição em guerras, como o exemplo mais recente de crianças forçadas a lutar como soldados; histórias individuais e coletivas de prisão política e tortura; histórias orais de sobreviventes idosas do sistema organizado de escravidão sexual durante a Segunda Guerra Mundial; documentários sobre sobreviventes de estupros em locais como a Bosnia-Herzegovina; relatos feitos por mulheres de “assassinatos em nome da honra”; narrativas que recordam dissidentes políticos “desaparecidos” na Argentina; narrativas de assassinatos, tortura e desaparecimento na África do Sul pós-apartheid; histórias de indígenas australianos “roubados” de suas famílias e comunidades e colocados em orfanatos ou lares adotivos.
Ativistas no campo dos direitos humanos ou de comissões em julgamentos oficiais buscam tais histórias e organizam arquivos de violações de direitos para construir a documentação necessária para trazer um caso perante fóruns oficiais e ao conhecimento público. Por vezes, uma narrativa em particular, publicada e divulgada como história de um(a) sobrevivente, atinge ampla repercussão internacional e transforma a testemunha em celebridade na arena dos direitos humanos.
Este seminário aborda narrativas de vida e campanhas pelos direitos humanos como domínios multidimensionais que se intersectam em pontos críticos, em uma relação ética que é, a um tempo, importante como reivindicação de justiça social e problemática na consecução deste objetivo.
Examinaremos como narrativas autobiográficas são produzidas, recebidas e circuladas no campo de direitos humanos, a fim de compreender melhor como e em que condições essas narrativas podem afetar a reorganização política atual e ser afetadas por ela.
Relevantes para o nosso seminário são as questões do tráfico contemporâneo de narrativas de sofrimento, o valor da “autenticidade” e o escândalo das imposturas, além de práticas alternativas de narrativas de vida.
Tradução de Mail Marques de Azevedo