segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Imagem-página

Prof.ª Dr.ª Verônica Daniel Kobs
           
Lucia Santaella e Winfried Nöth, em Imagem: cognição, semiótica, mídia, referem-se a diferentes maneiras de relação entre palavra e imagem. Tomando a imagem como referência, ela pode ser superior, inferior ou equivalente à palavra. Na produção literária de Arnaldo Antunes, a imagem é lemento absolutamente necessário e, em razão disso, são privilegiadas, em seus textos, as relações de predominância ou de iguladade da imagem diante da escrita.
No poema Gertrudiana, parte do livro 2 ou + corpos no mesmo espaço, a página transforma-se em imagem e serve de pano de fundo para o texto, centralizado e simetricamente distribuído em três versos minúsculos:


Poema Gertrudiana, de Arnaldo Antunes (ANTUNES, 1997, p. 63).

Nesse texto, que utiliza o famoso verso “a rose is a rose is a rose”, de Gertrude Stein (o que justifica o título do poema), Arnaldo Antunes transforma a palavra rose em zero. A opção, à primeira vista, remete ao algarismo 0, mas o último verso, quando apresenta a palavra zero escrita ao contrário, faz lembrar a transcrição fonética de rose, na qual o s vira z. Essa alternativa lança, então, nova luz sobre a inversão feita pelo poeta: número zero ou ro + ze, as sílabas fonéticas de rose? A dúvida se dissipa assim que o leitor relaciona o texto à imagem de fundo (com rosas em tons de branco, preto e cinza), a qual, somada ao verso final, remete à rosa repetida ciclicamente no verso de Gertrude Stein.
Essa elucidação que resume a função da imagem no poema de Arnaldo Antunes encaixa-se na categoria em que Santaella e Nöth inserem a imagem como elemento “superior ao texto e, portanto, o domina, já que ela é mais informativa do que ele”. Além disso, os autores ressaltam que, nesse tipo de composição, “sem a imagem, uma concepção do objeto é muito difícil de ser obtida”. (SANTAELLA & NÖTH, 1998, p. 54).
Entretanto, como a elucidação serve como reforço dado pela imagem aos fonemas que compõem rose, pode-se afirmar que a relação entre texto e imagem, em Gertrudiana, é também indício de equivalência: “A imagem é, nesse caso, integrada ao texto. A relação texto-imagem se encontra aqui entre redundância e informatividade.” (SANTAELLA & NÖTH, 1998, p. 54). A informatividade já foi comprovada pela elucidação dada pela imagem e exatamente por isso a redundância é pertinente, afinal a imagem representa o significado da palavra de outro modo, figurativamente, provocando a redundância do sentido.
Esse processo de equivalência, de acordo com Santaella e Nöth, acentua a “complementaridade” ou  a “determinação recíproca” e estabelece a intersemioticidade como pressuposto para a criação artística: “A vantagem da complementaridade do texto com a imagem é especialmente observada no caso em que conteúdos de imagem e palavra utilizam os variados potenciais de expressão semióticos de ambas as mídias.” (SANTAELLA & NÖTH, 1998, p. 55). Dessa forma, considerando a base gertrudiana do texto de Arnaldo Antunes, é pertinente a relação entre intersemiótica e transposição, já que o verso de Gertrude Stein é representado pelo escritor em forma de desenho, que, por sua vez, serve de pano de fundo aos versos, palavras que oferecem uma nova leitura ao texto base, aparentemente diversa, mas que desmonta a palavra (em letras, fonemas e sílabas), para analisar a essencialidade da palavra-objeto, tal como fazia Gertrude Stein. 

(Parte do artigo As relações entre imagem e palavra na produção contemporânea de Arnaldo Antunes, escrito pela Prof. Dra. Verônica Daniel Kobs e publicado na revista Miscelânea(Unesp), vol. 9.)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

UMBERTO ECO: “Sobre algumas funções da literatura”


Profa. Sigrid Renaux 

Neste primeiro texto em Sobre a Literatura (Rio de Janeiro: BestBolso,   2011) Eco discorre sobre alguns tópicos que, como sempre em se tratando de Eco, são de interesse tanto para “iniciados” em literatura quanto para leigos. Cito  abaixo alguns trechos  deste discurso apresentado no Festival dos Escritores em Mântua (Itália), em setembro de 2000,  que dizem respeito ao trabalho que estamos fazendo, professores e alunos, para nos distanciarmos por alguns momentos de nossos estudos e podermos reavaliar o que significa a literatura para nós.
Como Eco pondera,
Estamos circundados de poderes imateriais que não se limitam àqueles  que chamamos de valores espirituais, como uma doutrina religiosa. (...) E entre esses poderes, arrolarei também aquele da tradição literária, ou seja, do complexo de textos que a humanidade produziu e produz não para fiins práticos (...), mas antes gratia sui, por amor de si mesma – e que se leem por deleite, elevação espiritual, ampliação dos próprios conhecimentos, talvez por puro passatempo, sem que ninguém nos obrigue a fazê-lo (com exceção das obrigações escolares).
É verdade que os objetos literários são imateriais apenas pela metade, pois encarnam-se em veículos que, de hábito, são de papel.  Mas houve um tempo em que se incorporavam na voz de quem recordava uma tradição oral ou mesmo em pedra, e hoje discutimos sobre o futuro dos e-books (...). Aviso logo que não pretendo me deter esta noite na vexata quaestio do livro eletrônico. Estou, naturalmente, entre aqueles que, um romance ou um poema, preferem lê-lo  em um volume de papel, do qual haverei de recordar até mesmo as orelhas e o peso. (...)
Para que serve este bem imaterial que é a literatura? (...) A literatura mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimôno coletivo. A língua, por definição, vai aonde ela quer (...) mas é sensível às sugestões da literatura. (...) a literatura, contribuindo para formar a língua, cria identidade e comunidade. (...) Mas a prática literária mantém em exercício também a nossa língua individual. (...)
As obras literárias nos convidam à liberdade da interpretação, pois propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades e da linguagem e da vida. Mas para poder seguir neste jogo, no qual cada geração lê as obras literárias de modo diverso, é preciso ser movido por um profundo respeito para com aquela que eu, alhures, chamei de intenção do texto. (p. 9-12)
Espero que os trechos acima sirvam de introdução à leitura completa deste texto, que contém outros comentários instigantes sobre a maneira de encararmos os textos literários!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Kafka Edições: LIVROS QUE NÃO PARAM EM PÉ

Por Paulo Sandrini (UFPR)


Kafka Edições mandou gratuitamente cerca de 1700 livros para bibliotecas de todo o país, dentro do seu ideal de apoio ao livro e à leitura, e também ao acesso aos bens culturais. A série Livros que não param em pé logo estará disponível no site da editora para acesso gratuito, como parte do nosso projeto pela lei do Mecenato de Curitiba. Divulguem se puderem.

www.kafkaedicoes.com.br




Com que se pode jogar
Nesse silêncio vi as perguntas formando fila e calmamente apanhando as ferramentas de corte. E no silêncio compreendi a esfoladura a escavação o esmerilhamento. Eu percebi que uns saem ilesos — lhes é permitido desconhecer as agruras da esfoliação e igualmente a pressão irreversível do torno. Também percebi que outros — esses todos nós que não seremos poupados — terão que aguardar pelas respostas. Achando injusto, a princípio, e depois cedendo, e depois aceitando, assumindo a condição de ser em segundo plano. Nesse silêncio pude entender a espera, ou pelo menos tentei me aproximar de uma definição. Eu pude mensurar deuses e deuses, pude ver aquela planta cuja existência foi apenas — a partir de certo ponto que o destino previu — falta d’água, sede, secura, sequidão, estrangulamento. Eu pude compreender punhais e a evidência da dor enquanto ingrediente. Pude permanecer um lamento até que a própria voz se desfizesse. E eu queria entender em mim essa tormenta do silêncio para sempre no peso da canga do jugo da férula e desta inderrogável solidão.