segunda-feira, 21 de março de 2011

A dialética da transculturação em Hamlet sincrético: a adaptação do texto canônico para o imaginário cultural afro-brasileiro




Profa. Dra. Anna Stegh Camati




            Hamlet sincrético é uma apropriação/adaptação criativa, tanto no sentido pós-colonialista do termo, como no sentido mais geral popularizado pelas teorias da recepção. A reescritura do texto shakespeariano pelo grupo Caixa-Preta privilegia  a perspectiva da cultura alvo que se torna o foco principal, utilizando a cultura estrangeira para seus próprios fins. Como ensina Peter Burke (2003, p. 91), a apropriação/adaptação cultural pode ser analisada como “um movimento duplo de descontextualização e recontextualização” do texto canônico, gerando discursos políticos alternativos que implicam no questionamento e descentramento do legado cultural hegemônico. Reescrituras politizadas de obras canônicas fazem parte de um processo  que valoriza a voz, a história e a identidade daqueles que foram explorados, marginalizados e silenciados  por interesses e/ou ideologias dominantes.
            Em Hamlet sincrético, os elementos da cultura afro-brasileira não somente assumem a função de metáforas que traduzem a narrativa da peça canônica para um novo contexto; eles também comentam, criticamente, a realidade de uma maneira diferente da tradicional discussão verbal sobre a negação da identidade e/ou exclusão social e racial. O Grupo Caixa-Preta assume a sua condição étnico-racial através do processo de recodificação do cânone literário e da inserção de elementos da cultura, história e linguajar dos afro-descendentes brasileiros. Os elementos mitológicos de Hamlet foram fundidos com componentes míticos provenientes da cultura afro-brasileira. É um espetáculo estruturado a partir de uma estética negra que transita pelo sincretismo cultural e religioso afro-brasileiro e, também, pelo catolicismo popular e pentecostalismo. As personagens shakespearianas são historicizadas e transmutadas em encarnações de tipos da mitologia cultural negra, privilegiando a temática da negação da identidade. Hamlet, por ser aquele que busca a justiça, está associado ao orixá Xangô; Hamlet-pai é Oxalá; Gertrudes se assemelha a uma rainha carnavalesca, Polônio vem a ser um ex-babalorixá que negou sua cultura ao se converter num pastor evangélico, e Cláudio, por seu caráter amoral, é uma representação de Zé Pelintra.
            Uma impressionante atmosfera simbólica é instaurada por meio da inserção de referências musicais de matriz africana e dos sambas-enredo, além da interpolação de cânticos religiosos do batuque e de elementos relacionados ao rap, à capoeira e a umbanda e seu sincretismo.
            O espetáculo privilegia o aspecto ritualístico, de inspiração dionisíaca; é uma experiência visceral com elementos de crueza, no sentido artaudiano do termo, que conduzem os espectadores a um envolvimento orgânico. A linguagem física do espetáculo é articulada a partir da mistura e fusão de sons, ruídos, gritos, ritmos, música, dança, cor, luz e outros elementos visuais e sonoros. Este acúmulo de apelos sensoriais conduz a uma percepção além dos cinco sentidos, atingindo o espectador de imediato e acionando os fluxos energéticos que causam perturbação. Além da ativação dos cinco sentidos, a atmosfera de desassossego ainda é intensificada pela escolha do espaço cênico que abarca diversos segmentos do Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre: o pátio interno entre dois pavilhões desativados, os corredores escuros e sombrios pelos quais os espectadores são conduzidos à luz de vela, de onde vislumbram diversos cubículos, sem janelas e sem luz, e a ampla sala com diversas entradas e saídas onde se realiza o jogo cênico.
(Trecho do artigo publicado pela Profa. Anna Stegh Camati, na revista SocioPoética,
v. 1, nº 6, jul./dez. 2010, p. 11-20.)
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