quarta-feira, 30 de março de 2011

Prefácio do livro Relendo Lavoura arcaica,


(Apresentação e organização:  Prof.ª Dr.ª  Brunilda Reichmann) .


Pensar com delicadeza, imaginar com ferocidade

                                                                              Sabrina Sedlmayer (UFMG)

Há um cristalizado consenso, em nossa cultura, de que a etimologia do termo religião nos remete a religare, o que une o humano ao divino. Necessário, entretanto, seria lembrar que a palavra religião está também relacionada à relegere, o gesto de releitura, “de escrúpulo e de atenção que deve imprimir-se às relações com os deuses, à inquieta vacilação (o reler) ante as formas – as fórmulas – que é preciso observar para respeitar a separação entre o sagrado e o profano” (Agamben, 2005:99).

Nesse sentido, Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, não só promove uma distinta leitura da tradição, das normas, leis e interditos que regem a vida humana e que velam para manter homens e deuses a uma distância calculada, como também instaura uma reflexão sobre as atitudes de subordinação e respeito em relação às palavras sagradas. A atitude non serviam de André, protagonista do romance, espécie de tradução transluciferina (expressão cunhada por Haroldo de Campos para defender uma tradução sincrônica, que desrespeita a original), instaura uma releitura que recria, aponta os buracos falhos, traduz por revés, a contrapelo, o discurso do amor, do trabalho e da união da família.
E este livro de ensaios críticos que nos é apresentado agora, organizado por Brunilda T. Reichmann, Relendo Lavoura Arcaica (2007), com a participação de um grupo de pesquisadores que se detiveram durante um largo espaço de tempo à leitura da obra nassariana, também não faz eco às produções anteriores e não repete o mesmo. Os textos aqui reunidos, escritos muitas vezes em parceria, a quatro, seis mãos, também parecem defender o verbo relegere: uma necessária re-leitura do romance que desde a década de 70 do século XX inquieta e assombra a literatura brasileira. A imagem de um iceberg, bloco de gelo que vaga solitariamente pelo litoral literário brasileiro (Sedlmayer, 1997: 90) ainda serve para demonstrar a singularidade da escrita de Nassar que nem no tempo da produção nem nos dias atuais é aprisionado em termos de estilos, de grupos geracionais ou outras interpretações e exegeses homogeneizantes. Como é salientado por Camati, Leviski e Rocha no ensaio “O cinema da crueldade de Luis Fernando Carvalho: vozes dos ‘subterrâneos da memória’ em Lavoura arcaica”, a partir de 2001, o filme de Carvalho renovou o interesse pela obra de Raduan. Jovens leitores viram primeiro o filme para depois lerem os livros.
Pode-se então dizer (após mais de três décadas) que a recepção da obra nassariana é bastante sinuosa. Se no início teve uma aclamação crítica, prossegue paulatinamente com leitores que se apaixonam pelo texto e em seguida novamente se acentua pela ação dinamizadora do cinema, que atraiu vários leitores. Verônica Kobs, em “Per omnia Saecula Saecolurum sob o peso da tradição e das simbologias ancestrais”, também aponta para a pletora de imagens que constituem o universo arcaico de Nassar. Ocidente e oriente, de forma hibrida, cruzada e dialógica mostram como, nesse romance, não se tem uma origem única e como a leitura fílmica explorou esse recurso.
Esta publicação, assim, não só acrescenta e contribui com a fortuna crítica sobre Lavoura arcaica como também amplia os estudos de intermídia, o diálogo intersemiótico entre literatura e cinema e entre literatura e filosofia. Com operadores teóricos oriundos principalmente de Nietzsche, uma “sensibilidade dionisíaca” é analisada, sensivelmente, no texto “Lavoura arcaica e o dionisíaco: a interface entre a narrativa e o mito”. Reichmann e Pellissari apontam para o papel da embriaguês e da dança (junto a elementos marcadamente advindos da cultura árabe) em prol da vida. Eis Dionísio, o deus do devir, que demonstra que a moral é crueldade sublimada e que o jogo é uma união discordante entre Apolo e Dionísio. E é embriagado, num salto tigrino, que André traduz a “Parábola do faminto”, a “Parábola do filho pródigo”, e negrita, com fervor e violência, o que foi silenciado pela cultura e pela religião.
Uma outra leitura de Lavoura Arcaica como uma narrativa poética, mescla de ação e reflexão do protagonista André, auxilia o leitor que muitas vezes se depara com dúvidas em relação ao gênero. Lavoura Arcaica é um romance? Novela? Prosa poética? Em “A poética da narrativa e a narrativa poética em Lavoura arcaica”, Sigrid Renaux, parte de considerações de Todorov e Bakhtin, entre outros, para desenhar os contornos dos passos de André, que transita entre as figuras de herói e de poeta.
                Este trânsito é uma das marcas mais particulares e essenciais da escrita de Nassar. Entre razão e paixão, silêncio e esporro, amor e ódio, direito e esquerdo, homem e mulher, sagrado e profano, os seus textos se lançam. Esta articulação parece obedecer a uma lógica de reversibilidade, presente tanto em Lavoura arcaica como em Um copo de cólera: inicialmente demonstra-se a falsa ordem do mundo; posteriormente, é oferecida uma outra, imaginada. As duas visões de mundo parecem ser de natureza completamente oposta; mas, no decorrer das narrativas, deixam de ser tão antagônicas; movem-se, voltam atrás, mudam de sentido, alternado continuamente posições e lugares discursivos (Sedlmayer, 2006: 232).
André, protagonista do romance, utiliza-se do mesmo campo semântico de Iohána, seu pai, que cuida da transmissão do discurso bíblico no seio da família, mas profana os valores assentados. Através do furor de adolescente, joga, negligencia a doxa, os rituais destituídos de mito e imprimi na casa, na mesa, uma forma negligente, vacilante, um tremor finito.
São raros os livros que não sucumbem ao desgastado e pueril enredo de uma revolta do filho e a morte simbólica do pai. Lavoura arcaica evoca mais longe. Utiliza-se de uma outra lavra de palavras. Destila sal, cal, o verbo áspero para demonstrar como a vida coage os homens a constituir valores, e são esses mesmos que, nutridos pelo tempo, tentam anestesiar a união discordante entre natureza e cultura (Sedlmayer, 1999: 213).
E é o que, lúcido, disse Nietzsche, em O Nascimento da tragédia, e que Reichmann e Pelissari recuperam: “Contra a moral, portanto, voltou-se então [...] o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contravaloração da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la? [...] com o nome de um deus grego: eu a chamarei de dionisíaca”.
Ao desconfiar do caminho reto das leis, André percebe que a verdade é torta, e que não basta, como afirmou Goethe, receber a herança dos pais e transformá-la em algo singular. Há algo sinistro e sombrio na descendência, na filiação. Talvez porque no seio do familiar durma o estranho, aquilo que um dia Zaratustra vaticinou: “o que um pai silenciou, toma a palavra no filho; e, amiúde, vi desvendado no filho o segredo do pai”.
Cientes de que Lavoura arcaica não se dá por desvendado, este livro editado pela Editora Beatrice vem demonstrar, para os leitores brasileiros, que a recepção do texto de Nassar não está fechada; ainda hoje está sendo construída através de gestos de releitura, como este.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones. Traducción de Flavia Costa y Edgardo Castro. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora S.A., 2005.
SEDLMAYER, Sabrina. Ao lado esquerdo do pai. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.
________. A ficção mediterrânea de Raduan Nassar. In: Ficções do Brasil: conferências sobre literatura e identidade nacional. Coordenação Marcílio França Castro. Belo Horizonte: Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais, 2006.
________. Posfácio de Lavoura Arcaica. Lisboa: Editora Relógio D’Água, 1999.

segunda-feira, 21 de março de 2011

A dialética da transculturação em Hamlet sincrético: a adaptação do texto canônico para o imaginário cultural afro-brasileiro




Profa. Dra. Anna Stegh Camati




            Hamlet sincrético é uma apropriação/adaptação criativa, tanto no sentido pós-colonialista do termo, como no sentido mais geral popularizado pelas teorias da recepção. A reescritura do texto shakespeariano pelo grupo Caixa-Preta privilegia  a perspectiva da cultura alvo que se torna o foco principal, utilizando a cultura estrangeira para seus próprios fins. Como ensina Peter Burke (2003, p. 91), a apropriação/adaptação cultural pode ser analisada como “um movimento duplo de descontextualização e recontextualização” do texto canônico, gerando discursos políticos alternativos que implicam no questionamento e descentramento do legado cultural hegemônico. Reescrituras politizadas de obras canônicas fazem parte de um processo  que valoriza a voz, a história e a identidade daqueles que foram explorados, marginalizados e silenciados  por interesses e/ou ideologias dominantes.
            Em Hamlet sincrético, os elementos da cultura afro-brasileira não somente assumem a função de metáforas que traduzem a narrativa da peça canônica para um novo contexto; eles também comentam, criticamente, a realidade de uma maneira diferente da tradicional discussão verbal sobre a negação da identidade e/ou exclusão social e racial. O Grupo Caixa-Preta assume a sua condição étnico-racial através do processo de recodificação do cânone literário e da inserção de elementos da cultura, história e linguajar dos afro-descendentes brasileiros. Os elementos mitológicos de Hamlet foram fundidos com componentes míticos provenientes da cultura afro-brasileira. É um espetáculo estruturado a partir de uma estética negra que transita pelo sincretismo cultural e religioso afro-brasileiro e, também, pelo catolicismo popular e pentecostalismo. As personagens shakespearianas são historicizadas e transmutadas em encarnações de tipos da mitologia cultural negra, privilegiando a temática da negação da identidade. Hamlet, por ser aquele que busca a justiça, está associado ao orixá Xangô; Hamlet-pai é Oxalá; Gertrudes se assemelha a uma rainha carnavalesca, Polônio vem a ser um ex-babalorixá que negou sua cultura ao se converter num pastor evangélico, e Cláudio, por seu caráter amoral, é uma representação de Zé Pelintra.
            Uma impressionante atmosfera simbólica é instaurada por meio da inserção de referências musicais de matriz africana e dos sambas-enredo, além da interpolação de cânticos religiosos do batuque e de elementos relacionados ao rap, à capoeira e a umbanda e seu sincretismo.
            O espetáculo privilegia o aspecto ritualístico, de inspiração dionisíaca; é uma experiência visceral com elementos de crueza, no sentido artaudiano do termo, que conduzem os espectadores a um envolvimento orgânico. A linguagem física do espetáculo é articulada a partir da mistura e fusão de sons, ruídos, gritos, ritmos, música, dança, cor, luz e outros elementos visuais e sonoros. Este acúmulo de apelos sensoriais conduz a uma percepção além dos cinco sentidos, atingindo o espectador de imediato e acionando os fluxos energéticos que causam perturbação. Além da ativação dos cinco sentidos, a atmosfera de desassossego ainda é intensificada pela escolha do espaço cênico que abarca diversos segmentos do Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre: o pátio interno entre dois pavilhões desativados, os corredores escuros e sombrios pelos quais os espectadores são conduzidos à luz de vela, de onde vislumbram diversos cubículos, sem janelas e sem luz, e a ampla sala com diversas entradas e saídas onde se realiza o jogo cênico.
(Trecho do artigo publicado pela Profa. Anna Stegh Camati, na revista SocioPoética,
v. 1, nº 6, jul./dez. 2010, p. 11-20.)
Para ler o artigo na íntegra, acesse: